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#TBTRACK: “Channel Orange”, o manifesto pessoal de Frank Ocean

Frank Ocean

A música somente é o que é pelo seu poder de contagiar. Pode ser que uma batida nos leve a dançar e esquecer dos problemas, ou então que o canto de uma composição mais sentimental nos comova e faça refletir; são muitas as formas que a música nos toca, e muitos os artistas que as dominam à sua própria maneira e deixam sua marca a cada geração. O dom de Frank Ocean, um dos mais talentosos nomes da atualidade, sempre foi o de contagiar com as palavras, como em trabalhos como “Channel Orange” (2012) e “Blonde” (2016).

O californiano, hoje com 33 anos de idade, é especialista em transformar suas vivências nas mais poderosas canções pela sua voz, uma vocação nítida desde os tempos de Odd Future. Ao longo da última década, Frank conquistou seu espaço se abrindo sobre seus dramas pessoais, aos quais só pôde compartilhar ao mundo graças ao seu talento com a música, de uma forma muito autêntica e transparente que inspira tantos outros artistas desde 2012.

Seu álbum de estreia, “Channel Orange”, completa nove anos de lançamento em julho como um dos discos definitivos da atual geração do R&B. A obra é um verdadeiro manifesto que vai além de meros sucessos, mas amarra os relatos do cantor em torno de sua sexualidade, a autoaceitação a espiritualidade e seus vícios — um longo relato que ultrapassa suas próprias experiências e convida o ouvinte a enxergar aos outros e a si mesmo da maneira mais honesta possível.


“Channel Orange”, a estreia definitiva de Frank Ocean

“Channel Orange” chegou ao mundo sob expectativas enormes para um trabalho de estreia. Em julho de 2012, Frank Ocean já havia chamado a atenção da indústria ao lado do Odd Future e ao compor para nomes como Justin Bieber, John Legend e Brandy. Com a mixtape “Nostalgia, Ultra”, lançada no ano anterior, o californiano teve grande alarde dos fóruns online e de tantos outros gigantes do hip-hop, como Jay-Z e Kanye West — o que o rendeu até mesmo uma participação no álbum conjunto de ambos, “Watch The Throne”, em 2011.

Originalmente, a mixtape teria o selo da Def Jam Recordings, que não apoiou o seu lançamento e levou o cantor a disponibilizá-la gratuitamente na internet, o que fez a empresa mudar de ideia para o seu próximo projeto. Com o seu primeiro disco assinado por uma grande gravadora, Ocean teve total liberdade para conduzir sua própria direção musical e escolher a melhor forma para performar suas composições. O álbum, com 17 faixas e quase uma hora de duração ao todo, varia entre batidas mais simples e instrumentais mais intensos, mas sem nunca perder o foco de onde o artista procura apontar.

Influenciado por vários de seus artistas preferidos, como Marvin Gaye e D’Angelo, Frank construiu uma sonoridade única em “Channel Orange”, propondo uma revisão modernizada do R&B de maneira quase que despretensiosa. Boa parte do disco é formada por músicas minimalistas, algumas gravadas com poucos instrumentos e outras a partir de sintetizadores; assim, surgiram os sucessos “Thinkin Bout You” e “Lost”, e também canções como “Sweet Life” e “Super Rich Kids”.


O grande destaque das faixas, entretanto, está em como Frank dramatiza suas composições, deixando a produção quase que em segundo plano para dar mais ênfase às suas palavras, com apenas algumas baterias, guitarras e teclados ao fundo. Trata-se de uma nova perspectiva que o cantor oferece em relação aos seus antigos projetos, que eram geralmente feitos com muitos samples e batidas mais voltadas ao pop.

Em “Channel Orange”, é como se a voz de Ocean e os instrumentais das músicas soassem como se fossem uma coisa só. Os dez minutos de “Pyramids”, a faixa mais trabalhada de todo o disco, são o melhor exemplo: conforme a música muda de ritmo, os vocais também são versáteis em trocar de tom para se adequar ao clima, o que se repete de uma faixa para a outra — inclusive nos momentos mais dramáticos da obra, como em “Bad Religion” ou “Pink Matter”.

O desenvolvimento por trás do álbum envolveu muitas das mãos com as quais Frank trabalhou durante sua trajetória. Além dos seus parceiros de Odd Future, Earl Sweatshirt e Tyler, The Creator, o cantor também contou com a ajuda de Pharrell Williams na produção e a participação especial de André 3000 nos vocais de “Pink Matter” e de John Mayer nas guitarras de “White”.


O manifesto de Christopher Breaux

“Channel Orange” é um disco completamente narrativo, abordando diversos temas que fizeram parte do crescimento pessoal do cantor. O californiano disseca não apenas as mágoas de suas relações, mas também descreve as experiências mais íntimas que o definiram como pessoa.

A principal característica da escrita de Frank, além das lindas metáforas e das várias passagens fantasiosas, é sua facilidade em narrar histórias, um traço que se faz presente em quase todas as faixas do disco. Ao mesmo tempo que expõe suas vivências com detalhes minuciosos e ricos, Ocean levanta questionamentos que tocam ao ouvinte e o envolve ainda mais em sua narrativa, sejam aquelas vividas pelos seus próprios olhos ou aquelas observadas por fora.

Frank Ocean
Foto: Divulgação


“Crack Rock”, por exemplo, surgiu por meio das reuniões de Narcóticos Anônimos que o californiano frequentava com seu avô, o que o permitiu se aprofundar nos vícios em drogas na letra da música — um tema que se repete em momentos como “Pilot Jones” e “Lost”. Já em canções como “Bad Religion”, o artista constrói todo o cenário de uma de suas confissões mais inspiradas ao longo do disco, relacionando seu amor impossível por outro homem à pressão religiosa sobre os LGBTs.

A jornada de autoaceitação de Frank também está presente no decorrer das faixas de “Channel Orange”, escritas de maneira com que qualquer um se identifique, seja proposital ou não. O cantor se expressa através de cenas surreais em músicas como “Forrest Gump” e a própria “Bad Religion” que revelam muito mais do que os pronomes que escolhe usar a cada composição.


Apesar do disco carregar o nome de Frank Ocean em seus créditos, as experiências relatadas derivam de uma época em que o artista era conhecido de outra forma no mundo e nos cartórios. Em 2010, Christopher Edwin Breaux decidiu mudar de identidade no que definiu como “a merda mais empoderadora que já fez”, um drama que perdurou nos anos seguintes até se tornar, legalmente, Frank Ocean em abril de 2015.

As composições formam um retrato do processo de autodescoberta de Christopher Breaux, expondo os conflitos internos que reverberam por trás da voz de Frank Ocean. Em um meio historicamente recluso quanto à sexualidade como o hip-hop, as histórias assinadas pelo cantor deixaram um legado para vários de seus ouvintes, firmando um espaço livre dos estereótipos construídos sobre a fragilidade masculina, para que muitos pudessem se identificar e para que artistas como Tyler, The Creator, Lil Nas X e Kevin Abstract, por exemplo, pudessem compartilhar suas experiências também.

Antes do lançamento do trabalho, Frank divulgou uma nota extensa em sua página no Tumblr comentando os impactos que seu primeiro amor, um homem, teve em sua vida. O texto, inicialmente planejado para ser publicado junto ao álbum, resume melhor a temática do disco do que qualquer artigo ou coluna que tente, como essa. Com “Channel Orange”, Frank Ocean não só se provou como um dos artistas mais geniais de seu tempo mas também pôde, pela sua própria música, abrir-se ao mundo e ser quem realmente é, abraçando e inspirando tantos outros a fazerem o mesmo.

Quatro verões atrás, eu conheci alguém, quando eu tinha 19 anos. Ele tinha também. Nós passamos aquele verão juntos, e o verão depois, quase todos os dias, e nos dias que passávamos juntos, o tempo corria. A maior parte do dia eu via ele e o seu sorriso. Eu ouvia sua conversa e o seu silêncio, até que fosse hora de dormir, e os meus sonos eu geralmente dividia com ele. Quando eu percebi que estava apaixonado, foi maligno, sem qualquer esperança. Não havia fuga, nenhuma maneira de negociar com o sentimento, sem chance. Era meu primeiro amor, mudou minha vida.

Naquela época, minha mente divagava sobre as mulheres com quem eu já tinha ficado, com quem me importei e pensei que fosse apaixonado. Eu me lembrava das músicas sentimentais que eu gostava quando era adolescente, aquelas que toquei quando tive uma namorada pela primeira vez. Eu percebi que elas eram escritas em um linguagem que eu ainda não falava. Eu me dei conta de muita coisa, muito rápido.

Imagine ser jogado de um avião. Porém eu não estava em um avião. Eu estava em um Nissan Maxima, o mesmo carro onde eu fiz minhas malas e fui para Los Angeles. Onde eu sentei e contei para o meu amigo como me sentia. Eu chorei enquanto as palavras saíam da minha boca. Fiquei triste por elas, sabendo que nunca mais poderia guardar elas comigo mesmo. Ele me apoiou, me disse coisas legais. Ele fez o seu melhor, mas ele não poderia sentir o mesmo. Ele tinha que ir cedo para casa, estava tarde e sua namorada estava o esperando. Ele não contaria a verdade sobre os sentimentos por outros três anos. Eu sentia que apenas idealizava alguma reciprocidade por anos.

Agora imagine ser jogado de um penhasco. Não, eu não estava em um penhasco. Eu ainda estava no meu carro, dizendo para mim mesmo que seria tranquilo e respirando fundo. Respirei e fui em frente. Eu mantive uma amizade peculiar com ele porque eu não conseguia imaginar minha vida sem ele. Eu falhei em dominar a mim mesmo e às minhas emoções. Eu nem sempre era bem-sucedido.

A dança seguiu… Eu mantive o ritmo por vários verões depois daquele. É inverno agora. Estou escrevendo isso em um avião de volta para Los Angeles, de Nova Orleans. Fui pra casa para outro Natal. Eu tenho um assento ao lado da janela. É 27 de dezembro de 2011. Até agora eu já escrevi dois álbuns, sendo esse o segundo. Eu escrevi para me manter ocupado e são. Eu queria criar mundos que fossem mais rosas que o meu. Eu tentei canalizar as emoções sobrecarregadas. Eu estou surpreso com o quão longe isso me trouxe. Antes de escrevê-lo eu contei a algumas pessoas a minha história. Eu tenho certeza que essas pessoas me mantêm vivo, me mantêm seguro… Sinceramente, são esses os caras que eu quero agradecer do fundo do meu coração. Cada um de vocês sabe quem são… Humanos incríveis, provavelmente anjos.

Eu não sei o que acontece agora, e tá tudo bem. Eu não tenho mais nenhum segredo que eu precise guardar. Provavelmente alguma merda pequena, mas sabe como é. Eu nunca estive sozinho, por mais que eu me sentisse assim… Por mais que eu ainda me sinta às vezes. Eu nunca estive. Eu não acho que eu posso mais ser.

Obrigado. Ao meu primeiro amor, sou grato por você. Grato que por mais que nada tenha sido como eu esperava ou achava que não fosse suficiente, na verdade era. Algumas coisas nunca são… E nós fomos. Eu não vou esquecer de você. Eu não vou esquecer o verão. Eu vou me lembrar de quem eu era quando te conheci. Vou me lembrar de quem você era e como nós mudamos e continuamos os mesmos.

Eu nunca tive tanto respeito pela vida como eu tenho agora. Talvez precisemos de uma experiência de quase morte para nós sentirmos vivos. Obrigado. Para minha mãe. Você me fez forte. Eu sei que só sou corajoso porque você foi primeiro… Então, obrigado. A todos vocês. Por tudo que é bom. Eu me sinto como um homem livre. Se eu ouvir mais perto… Eu consigo ouvir o céu caindo também.

– Frank Ocean, em nota escrita em 27 de dezembro de 2011 e divulgada em 4 de julho de 2012, antes do lançamento de “Channel Orange”

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