Rashid tem passado por uma fase muito especial em sua vida, tanto pessoal quanto profissional. Ao mesmo tempo que planeja seu retorno definitivo aos palcos com músicas inéditas, o rapper também aguarda pelo nascimento de seu filho, buscando conciliar sua agenda pessoal em um ano de lançamentos igualmente importantes para a sua carreira.
Em suas palavras, “Pílula Vermelha, Pílula Azul”, seu mais novo single lançado nesta quarta-feira (20), simboliza o início de sua nova trajetória após meses de aprendizado. “No meio desse caminho, eu encontrei uma nova forma de fazer as coisas, uma nova forma de comunicar minha arte pras pessoas, e tudo isso vai começar a ser exposto a partir desse som”, disse o artista.
Em entrevista ao Tracklist, Rashid conversou sobre as influências por trás da canção e os próximos passos que pretende seguir em sua carreira. O single foi pensado a partir de diferentes referências, desde inspirações visuais em “Akira” ou “Blade Runner”, por exemplo, até os versos de Chico Science e do Nação Zumbi, nomes que têm sido uma verdadeira inspiração para o rapper nos últimos meses.
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De acordo com o cantor, seus novos trabalhos exploram novas formas de expressar suas mensagens ao público — uma preocupação ainda mais especial ao abordar temas tão pertinentes em um ano de eleição. “O que eu faço aqui é simplesmente algo aprendido com esses caras: com o Chico, com o Ariano [Suassuna], com o Grandmaster Flash, com o Public Enemy, com o Racionais, com o Thaíde…”, afirmou o rapper. “Eu acredito que o crédito artístico do rap está em achar novas maneiras de comunicar essas coisas que precisam ser comunicadas pra molecada. Você vai ver isso na forma da poesia, você vai ver isso na mudança das batidas, você vai ver isso na estética, você vai ver isso no audiovisual”, complementou.
Leia a entrevista com Rashid na íntegra:
TRACKLIST: Boa tarde, Rashid! Tudo bem? Essa é a nossa segunda entrevista com você e é uma honra podermos estar conversando de novo! Na primeira vez, nós conversamos sobre o “Diário de Bordo 6”, e agora, estamos aqui com seu novo single, “Pílula Vermelha, Pílula Azul”. E aí, como você tá e como tá a ansiedade pro lançamento?
RASHID: Boa tarde! Cara, faz tempo que eu não lanço, né? Eu tô um pouco ansioso, do tipo “como é que lança música mesmo?”. Então, eu tô de fato com um medinho, mas um medinho da hora, sabe? Curioso em como as pessoas vão receber essa música. O último lançamento foi o “Diário de Bordo 6”, e já faz praticamente um ano que a gente lançou esse som, e bom, pode não parecer um período tão longo pra determinados artistas, mas eu sempre lancei muita coisa na minha trajetória, e um ano sem lançar é bastante tempo pra mim. Mas eu tô bem ansioso, expectativa lá em cima, espero que o povo goste.
TRACKLIST: Na última vez que nós conversamos, nós ainda estávamos em um período muito incerto da pandemia, sem muita perspectiva sobre como as coisas iriam voltar, e hoje nós estamos podendo voltar aos shows e a se reorganizar. Como tem sido esse retorno pra você e como a gravação desse single reflete esse novo momento?
RASHID: Primeiro que esse retorno tá sendo especial. Eu tô vivendo um momento especialíssimo na minha vida, meu filho tá chegando… Ao mesmo tempo que a gente tá saindo desse período trancafiado em casa e os shows tão voltando, eu tô com a agenda um pouco separada pra esse momento, porque eu tô esperando meu filho chegar e eu não quero correr o risco de não estar aqui no momento que ele vier! A gente tá com a agenda separada, não tô fazendo tanto show agora, porém, é por uma causa muito nobre e eu tô muito feliz por isso, tô só aqui no aguardo! E enquanto isso, fazendo arte, fazendo som…
Acho que essa música reflete, de certa forma, as ideias de alguém que estava, de fato, preso em casa. Ela é recheada de referências cinematográficas, literárias também, e outras coisas musicais, ela é recheada de referências brasileiras. Acho que ela reflete uma coisa que foi muito pensada, de alguém que tava ali fazendo planos mirabolantes durante um tempo pra poder colocar na rua, saca? Tanto a música, quanto o clipe, tão recheado de camadas assim… Acho que só esse tempo que a gente teve pra ficar dentro de casa — porque não foram férias, muitos de nós trabalhamos dobrados nesse momento, e é o meu caso também — mas acho que só esse tempo permitiria que eu pudesse criar algo assim, com tantas camadas de referência, de metáfora, com tantas camadas de profundidade na poesia também, sabe? Por essa perspectiva, essa música reflete esses tempos trancafiados.
TRACKLIST: Esse single traz um lado mais eletrônico da sua música, e também uma nova forma, pra você, de dividir os versos — como você comentou, por exemplo, sobre essa ser a primeira vez que você interpreta duas vozes diferentes em um mesmo som. Pra você, como que é buscar essas novas formas de se expressar, seja na sonoridade ou nas composições, e como você procura se renovar nesse processo criativo?
RASHID: Eu acho que é um caminho natural, dado as influências, saca? O tanto de coisa que eu acabo pesquisando, que eu acabo lendo, que eu acabo assistindo… Em algum momento, você quer extravasar isso pra sua própria arte, para além das referências e além das citações; deixar que essas influências, de fato, influenciem de uma forma mais espontânea, sem ficar prendendo elas demais. E eu acho que é a primeira vez que eu permito que minhas influências aflorem de uma forma tão explícita num trabalho, tanto nessa música, quanto nas outras que virão por perto — vocês que nos aguardem! Mas acho que é a primeira vez que eu permito que essas influências se aflorem dessa forma, saca?
Acho que o lance de ter dois personagens na música, como a poesia da música foi desenvolvida… Tem o Rashid ali, e ao mesmo tempo, tem um passo pra frente, sabe? Tem uma nova busca, uma nova forma de tentar escrever, procurar novos caminhos de expressar velhos sentimentos também. Acho que essa é uma boa síntese: é a primeira vez que eu permito que minhas influências, de fato, jorrem aí.
TRACKLIST: A música tem influências de vários lugares e épocas diferentes. Por exemplo, você traz um verso do Chico Science dos anos 90, além de várias influências visuais de “Akira”, “Blade Runner” e também “Matrix”. Pra seguir nesse papo sobre as referências, como você procura amarrar inspirações de tantos lugares diferentes, como da música, do cinema e da literatura, em um só trabalho?
RASHID: Na minha cabeça, tudo faz sentido, tá ligado? Acho que é um hábito nosso de trazer essas coisas, nas batalhas de freestyle se vê muito isso, a gente acaba usando muitas metáforas, muitas citações, muitas analogias pra poder desenhar bem e objetivamente o que a gente tá querendo dizer, isso acaba sendo transferido pras letras. Eu sempre pensei nisso: o freestyle que me trouxe essa parada de trazer as referências. E eu nunca fiz uma referência só pela referência também, saca? Falar uma coisa só por falar. Geralmente, ela tá profundamente conectada com alguma coisa que eu quero dizer e até, de repente, em uma outra camada assim, quando você para e analisa aquele trecho por si só. Na minha cabeça, tudo faz sentido.
Juntar Chico Science com “Akira”, com “Blade Runner”, e com “The Message”, do Grandmaster Flash, por exemplo… A gente tá falando de obras-primas, já tem um paralelo ali. O disco “Da Lama ao Caos”, do Nação com o Chico, é absurdo pra mim, e eu recentemente li o livro da Lorena Calábria sobre esse disco, então tava tudo muito fresco na minha cabeça ali, tava tudo guardado na mente. Então você já vê: uma referência está aqui por causa de outra referência que me trouxe, que foi o livro, saca? (risos) Eu passei um período meio que imerso na obra dos caras, ouvindo tanto esse disco quanto os outros, então eu acho que essa foi minha forma de conseguir trazer à tona um pouco desse meu mergulho aí, sabe? Mergulhei e não voltei vazio, voltei com alguma coisa na mão.
TRACKLIST: Isso é algo que o Emicida também já comentou nas entrevistas, sobre vocês dois usarem várias referências nas batalhas, né?
RASHID: Sim, esse é o lance! Acho que as batalhas foram uma grande escola, pelo menos da minha forma, de usar essas referências. Pra conseguir sempre usar de forma que elas sejam de fato úteis, e ajudem a expandir e a, de repente, traduzir a mensagem pra pessoa que tá ouvindo.
TRACKLIST: Eu achei muito interessante o que você comentou sobre querer “dar um olhar ao futuro do gueto” no single, tanto no clipe, quanto na música em si, e você toca em pontos muitos delicados relacionados a isso, como, por exemplo, as situações em que as pessoas deixam as causas coletivas de lado para focarem no próprio benefício — o que fica ainda mais nítido no videoclipe. Como alguém que viveu muitas dessas histórias de perto, como você enxerga essa realidade e como você busca retratá-la na canção?
RASHID: O clipe, especificamente, ele deixa mais objetivo, de certa forma, a coisa de uma pessoa que vive uma outra realidade, em um outro padrão de vida, tem uma outra bolha, e a pessoa que tá ali na rua, no dia a dia, vendo como as coisas tão. Mas eu acho que o mais louco de tudo isso é que, muitas vezes, aquilo ali tá dentro do pensamento de uma só pessoa, pode estar engendrado no raciocínio de uma pessoa só: viver entre o sonho e a merda da sobrevivência, já diria o Edi Rock. Todo mundo quer uma vida melhor, só que aí a gente tem a realidade nos puxando a todo momento. Acho que o clipe ajuda a ilustrar isso e a música em si, você simplesmente ouvindo, acho que ela traz essa dualidade de duas pessoas que vivem no mesmo universo, mas como cada uma enxerga a vida é onde tá a diferença, e eu meio que entro ali em alguns momentos como a voz da razão, tentando colocar a bola no chão e fazer a gente pensar um pouco mais na realidade coletiva.
Mas eu acho que a gente vive isso normalmente, entre o individualismo e as causas, porque a gente tem a nossa própria vida, mas ao mesmo tempo a gente tem o mundo aí acontecendo, é um equilíbrio delicado. A gente tá passando por esses momentos agora, crise sanitária, crise humanitária, crise econômica, crise política, tá ligado? A todo momento, o seu posicionamento sendo exigido aí fora… E a gente tá num ano que tem eleição e, ao mesmo tempo, Copa do Mundo! Essa música é a eleição e a Copa do Mundo no mesmo ano, entendeu? (risos) Principalmente se o Brasil ganhar!
TRACKLIST: Queria comentar justamente sobre as eleições! Falando sobre causas, muitos dos temas que você trata na música você tem comentado sobre ao longo de toda a sua carreira, e são temas que vão ser bastante debatidos nos próximos meses devido às eleições. Qual a importância que você enxerga, pra você e pros artistas no geral, enfatizar essas mensagens sociais em um período tão efervescente como esse?
RASHID: Novamente é o rap aí na linha de frente, né? Como você mesmo disse, tem temas que a gente tá falando a carreira toda e é verdade, e eu acho que justamente vai ter gente que vai ouvir a música de lá atrás e vai falar: “Puts, mas é isso, exatamente!”. Nós estamos precisando falar disso a vida inteira. E eu acho que é isso que deixa mais explícita a mensagem, o lance da música de ter o 8 e o 80: a gente tá marretando isso aqui há mil anos e não tão prestando atenção, só prestam atenção quando pisam no calo deles. E tem outra realidade acontecendo, da festa… E é uma realidade que tá dentro do rap agora também. Então, eu acho que a música vai colocar na mesa isso daí pras pessoas observarem como estamos olhando pra vida, e como, dependendo da música, o nosso olhar pra vida muda também, tá ligado? Numa mesma playlist, às vezes toca um Racionais, e na sequência, vai tocar uma outra música que vai te fazer ver o mundo de outro jeito. Acho que isso acaba ajudando a reforçar a mensagem da música.
Mas falando novamente da nossa posição: aqui estamos novamente, acho que é sempre importante falar disso. Eu acredito que o crédito artístico do rap está em achar novas maneiras de comunicar essas coisas que precisam ser comunicadas pra molecada. Você vai ver isso na forma da poesia, você vai ver isso na mudança das batidas, você vai ver isso na estética, você vai ver isso no audiovisual. É um discurso que vem sendo repetido desde os primórdios do rap, mas se você vai estudar a história do movimento negro no Brasil, você vai ver que desde 1930 os sistemas vêm sendo debatidos no país. Eu acho que o crédito do rap está em renovar esse discurso e não permitir que ele simplesmente se torne um discurso repetitivo e ultrapassado, porque ele continua se fazendo importante e relevante, e eu acho que a nossa missão tem sido essa: como que a gente vai conseguir continuar comunicando essas ideias pra esse pessoal, sem as pessoas darem o play e falarem: “Puts, de novo!”. Não, a gente tá tentando fazer entrar no ouvidos de formas novas, com musicalidades novas, com ideias e às vezes palavras novas e referências novas, pra uma ideia que tá sendo repetida no Brasil desde 1930, pelo menos — na verdade, desde antes, desde os movimentos abolicionistas.
TRACKLIST: E são discussões que não são só de hoje na música, né? Acredito que o próprio disco do Chico Science e da Nação Zumbi dialoga muito sobre esses temas e também procura renovar a mensagem de uma nova forma, como você mesmo comentou, certo?
RASHID: Exatamente! A proposta do Chico e da Nação era essa, de renovar o passado. É uma música feita de muitos recortes e muitas referências regionais e internacionais. Tanto que, em determinado momento, houve aquele grande debate entre o próprio Chico e o Ariano Suassuna, praticamente dois movimentos “divididos”, mas unidos porque também tinham a mesma raiz. E acho que a parada do próprio Chico era essa: de trazer um recorte do passado pra fazer a música do amanhã. Eu acho que o “Da Lama ao Caos” é um disco que é muito bem a trilha sonora desse Brasil underground, desse Brasil lado B, que na real é o Brasil protagonista, mas é um Brasil que é escondido e pintado de uma forma diferente. É a trilha sonora do brasileiro e da brasileira que tá no busão, que tá no metrô, que tá no corre, que tá vendendo o barato na rua, que tá indo pro trampo, que tá varrendo, que tá advogando mas que sabe de onde veio, que tem consciência de classe. Acho que esse disco ilustra muito bem isso. O que eu faço aqui é simplesmente algo aprendido com esses caras: com o Chico, com o Ariano, com o Grandmaster Flash, com o Public Enemy, com o Racionais, com o Thaíde…
TRACKLIST: Você comentou que “Pílula Vermelho, Píluza Azul” é o primeiro passo em direção à uma nova trajetória em sua carreira. Pra finalizar, eu gostaria de perguntar o que você tem planejado pros próximos meses, entre lançamentos, shows e o nascimento do seu filho também, e o que mais veremos do Rashid em 2022?
RASHID: Quando eu digo que esse é o primeiro passo de uma nova fase, é porque é um novo momento. Eu aprendi muitas coisas durante esse período de quarentena, estudei muito e fiz muitas coisas. E é agora que eu vou começar a colocar pra fora, tirar as cartas da manga e essa é a primeira delas. No meio desse caminho, eu encontrei uma nova forma de fazer as coisas, uma nova forma de comunicar minha arte pras pessoas, e tudo isso vai começar a ser exposto a partir desse som, a partir de “Pílula Vermelha, Pílula Azul”. O que as pessoas podem esperar do Rashid em 2022 é uma nova experiência, uma nova forma de ouvir a música do Rashid. É isso que eu quero trazer.