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#TBTrack: O espetáculo lírico e sonoro de Rosalía em “El Mal Querer”

O desabrochar musical da cantora sobre uma obra que ressignificou o flamenco tradicional e o introduziu a um pop marcante

Com o lançamento do novo álbum “MOTOMAMI” marcado para o dia 18 de março e os singles “La Fama” e “SAOKO” soando como gêneros ainda não explorados por Rosalía, se é levado a refletir sobre “El Mal Querer”, o primeiro disco da espanhola que a colocou no centro da indústria musical e a tornou em um fenômeno do flamenco e do pop experimental.

Abrindo a era com a apoteótica “MALAMENTE”, a até então recente graduada em música pela Escola Superior de Música da Catalunha, transforma o seu TCC em uma obra que viria a ser premiado na categoria de Melhor Álbum do Ano no Grammy Latino.

Ecoando por todos os lados a essência da sua cultura e os ensinamentos adquiridos em uma das maiores e mais concorridas universidades da Catalunha, a jovem originária de Barcelona entusiasmava aqueles que viam no canto uma forma de se expressar.

Tanto artisticamente quanto pessoalmente, “El Mal Querer” é o manifesto mais subjetivo de Rosalía que retrata inúmeras facetas da sociedade, na qual o gênero feminino é o protagonista de muitas das letras presentes no álbum.

A mesclagem do flamenco junto ao pop melancólico deu ao projeto um ar de novidades para os amantes da música. O flamenco, um estilo musical cigano, apesar de tradicional na Espanha, não estava presente nos ouvidos da cantora. No entanto, tudo mudou quando a própria, ainda adolescente, descobriu o ritmo ao sair do colégio.

“Ela não tinha costume de ouvir flamenco, havia escutado alguma coisa e pouco mais. De modo que era um desafio muito grande. No começo fazia por sua conta misturas de jazz e outros tipos de música. Não prestava muita atenção às diretrizes de minhas aulas, mas estava interessadíssima em aprender”, afirmou José Miguel Vizcaya, ex-professor da artista na Esmuc.

A partir dos saberes desenvolvidos pela catalã ao longo dos seus profundos estudos sobre o gênero, começava uma jornada triunfal ao estrelato que unido ao incompreensível talento de Rosalía, permitiu-a de lançar ao mundo um universo criado em sua mente, e que se converteu em um dos maiores espetáculos hispânicos da última década.

O marcante letrismo de “El Mal Querer”

Rosalia anuncia data de lançamento do novo álbum, El Mar Querer
Foto: reprodução/Instagram @rosalia

Em “A Ningún Hombre”, a cantora, como exemplo de liberdade feminina, finaliza o disco debruçando-se sobre a grande conquista de sua independência, essa pela qual veio lutando arduamente para alcançar desde o primeiro capítulo do projeto.

Imerso em palavras reconfortantes e representativas, a canção esbanja em seus versos o que por muito tempo, ao longo das demais músicas, não foi possível atingir. A autonomia de se poder fazer presente como mulher e impedir o homem de se apossar dos seus direitos.

“A nenhum homem permito / Que dite minha sentença / Só Deus pode me julgar / Só a ele devo obediência”, como um simbolismo feminista, Rosalía elucida durante toda a obra uma espécie de realidade sagrada, na qual a composição das faixas é o ponto alto do vislumbre lírico.

Quando se escuta ao álbum é possível entendê-lo como uma importante adaptação do livro “Romance da Flamenca”, de autor desconhecido, no qual tornou-se a principal inspiração para o desenvolvimento do material. Por isso a divisão das faixas em capítulos.

Em um quadro visual que beira o renascentismo, a cantora investe não apenas em produção sonora, mas também em sentidos literários que possam ilustrar um mundo de ideias e de lutas pela qual a artista defende.

Embora na capa do disco a mulher seja retratada como um ser divino, é quase nulo as chances desse personagem ser feliz e alçar voos durante a execução do material, tendo em vista os infinitos cenários violentos em que ela é sujeitada. É um claro retrato de um mundo misógino e sexista em formato de belas, mas trágicas canções.

Em “El Mal Querer” a tragédia é veterana, a melancolia é refúgio, o lirismo é essencial e os vocais chorosos são crucias para a representação da persona desafortunada e desprovida de amor e cuidados. Como um livro que possui o vilão e o herói, o homem é o grande pesadelo da mulher, que ironicamente é sua esposa.

A arte em seu formato mais puro e sensível

Foto: reprodução/Instagram @rosalia

No dia 2 de novembro de 2018 o público de Rosalía, mesmo que pequeno, se deparou com um ato além do normal para uma principiante da música. Depois de “Los Angéles”, EP experimental em que o flamenco, o violão e a esplendida voz da espanhola convertiam-se em um trio de ouro, chegava aos ouvidos dos seus admiradores uma arte lapidada essencialmente.

Com 11 músicas, separadas por elementos e realidades expressadas por um cenário ibérico e a cultura espanhola e cigana, “El Mal Querer” é definitivamente uma história a ser contada e vivida por meio da voz e interpretação da catalã.

Através das cartas de tarô, um oráculo e baralho utilizado na magia e cultura dos ciganos para prever o futuro, as faixas e suas composições são expostas nos capítulos do álbum como um roteiro que pontuará a caminhada da mulher, desde o seu primeiro amor até a destruição desse sentimento pelo próprio parceiro que se tornou o algoz do relacionamento.

O projeto discográfico, que rapidamente figurou-se em um pedaço legítimo e fundamental da arte musical dos últimos tempos, encaminhou-se como uma tragédia grega que contempla o presságio da vida, essa que encara desafios e martírios para manter-se viva diante de um amor abusivo.

Os quilômetros encarados pela mulher durante as 11 canções são baseados no mais autêntico e atual cenário de quem pertence a um espaço violento. A agressão física, o aborto, a redenção e o salvamento, embora transformados em expressões artísticas, não perdem o significado de incontestável no disco, já que quando recitados remetem rapidamente aos acontecimentos que perduram por séculos na vivência do gênero feminino.

Como grito final de uma era já finalizada, porém impecável e epicamente atemporal, Rosalía e sua estreia proporcionam até hoje a verdade e a essência da música, na qual faz parte da contemporaneidade junto aos resquícios históricos de séculos de impunidades e castidades ao corpo e moral de cada mulher.

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