Nos últimos anos, vários talentos da música nos deixaram cedo demais, enquanto fomos obrigados a nos despedir de ídolos de longa data. Ao longo do tempo, a despedida de um artista se tornou um evento único para gravadoras e representantes lucrarem sobre o seu nome, homenageando sua memória em forma de música. Entretanto, são muitas as controvérsias que envolvem o lançamento de álbuns póstumos entre fãs e cantores.
A procura por lucro dentro da indústria fonográfica passou a ignorar as vontades e ideias dos artistas em sua ausência, tornando, em muitos casos, um gesto de respeito em uma desconsideração ao lado criativo que envolve a organização de um disco, por exemplo. Ao mesmo tempo que vários fãs fazem questão de que seja prestado algum tributo, o consentimento do artista é considerado fundamental para que seja possível honrar ao seu legado — até mesmo entre quem ainda está construindo o seu.
Durante essa semana, Anderson .Paak publicou uma foto em seu Instagram com a nova tatuagem que fez em seu braço, com um recado claro e contundente. “Quando eu tiver ido, por favor não lancem nenhum álbum ou música póstumos com meu nome. Aquelas eram só demos e nunca tiveram a intenção de serem ouvidas pelo público”, eternizou em sua pele.
Não só Anderson, mas vários artistas são contra a ideia de trabalhos póstumos, embora o assunto não seja debatido com tanta frequência nos bastidores (nada pior do que planejar o próprio pós-morte, não é mesmo?). Lana Del Rey também se posicionou contra, republicando o story do cantor em seu perfil e deixando claro que proibiu, por medidas legais, o lançamento de qualquer um de seus materiais de estúdio após a sua morte.
A principal problemática em torno de lançamentos do gênero é o propósito do artista com as suas gravações incompletas. Quão ético seria lançar um trabalho em nome de alguém que sequer está presente entre nós para dar o seu aval? Afinal, a música, antes de ser comprada, baixada e ouvida, é feita para ser sentida.
Os principais álbuns póstumos na história da música
Na história da música, há quem tenha se inspirado pela morte e planejado o próprio álbum póstumo. O caso mais emblemático na memória recente é “Blackstar”, último disco de David Bowie, lançado dois dias antes de sua morte, em 2016. Na época das filmagens de seu último clipe, feito para a música “Lazarus”, o cantor interrompeu o tratamento do recém-descoberto câncer de fígado que o vitimaria pois já sabia que não resistiria à doença, conforme relatou o diretor do vídeo, Johan Renck, o que reforça o simbolismo da produção. Apesar de nunca ter sido confirmado, muitos acreditam que Bowie tenha recorrido ao suicídio assistido após o lançamento do álbum, gravando o trabalho como uma despedida ao público.
Freddie Mercury, outro dos maiores astros do rock, também se despediu da música em situação semelhante. Já bastante debilitado pelas complicações da Aids, doença que o acometeu de 1987 até sua morte, em 1991, o cantor dedicava seus esforços à criação de “Made In Heaven”, o último trabalho de estúdio gravado pelo Queen com seu vocalista original. O disco foi lançado apenas em 1995 e destaca o trabalho de um artista diante da própria morte, uma vez que a banda já sabia sobre o estado de saúde do britânico.
Há também os casos em que o artista deixa trabalhos quase concluídos em seu estúdio antes de sua morte, com significados e intenções bem esclarecidas entre sua equipe. Mac Miller, por exemplo, faleceu em 2018 durante as gravações de “Circles”, lançado como um álbum póstumo somente em 2020, depois de ser finalizado pelo produtor Jon Brion, que afirmou ter se baseado nas conversas e em sua experiência com o rapper. O disco, originalmente planejado para acompanhar “Swimming”, foi amplamente aprovado pela crítica e é considerado o projeto definitivo da carreira do cantor.
Todos esses casos, porém, são exceções. A imensa maioria dos lançamentos póstumos não envolve qualquer planejamento além de gravações inacabadas de estúdio que na maior parte das vezes, como Anderson .Paak ressaltou, “nunca tiveram a intenção de serem ouvidas pelo público”. Trata-se de uma diferença muito estreita entre uma homenagem e um desserviço, responsável por garantir a integridade criativa de um artista que não está mais presente entre nós para defendê-la.
As problemáticas em torno dos lançamentos póstumos
Uma das práticas mais comuns na indústria é a exploração de catálogos antigos em busca de novidades, sejam materiais inéditos ou versões novas de clássicos. Os Beatles, por exemplo, rendem montanhas de dinheiro sobre sua própria discografia há décadas, lançando edições comemorativas com remasterizações e demos de canções já conhecidas e aclamadas pelo público.
Nesses casos, o respeito entre as partes artística e comercial jamais foi infringido. Deixando as inúmeras disputas judiciais por direitos autorais à parte, nenhuma gravação nova da banda chegou aos ouvidos dos fãs sem a aprovação dos representantes do grupo, apresentando assim novidades e curiosidades sem gerar qualquer conflito — talvez a forma mais justa de celebrar um artista em inatividade.
Duas lendas do rap que se foram prematuramente, Tupac Shakur e The Notorious B.I.G., também deixaram tesouros para trás antes de partirem, rendendo fortunas após a sua morte ainda maiores do que as que já faturavam em vida. “Life After Death”, um dos maiores clássicos do rap, foi lançado duas semanas antes do assassinato de Biggie, em 1997, e se tornou um dos maiores sucessos comerciais da história da indústria, sendo sucedido dois anos depois pelo póstumo “Born Again”. Já 2Pac recebeu nada mais, nada menos do que sete trabalhos após a sua morte, em 1996, graças à grande quantidade de materiais gravados durante sua carreira, todos envolvendo de perto sua mãe, Afeni Shakur, antes de seus lançamentos.
Porém, tamanha dignidade não se repete com tanta frequência na indústria. Em 2010, um ano após a morte de Michael Jackson, foi lançado “Michael”, o primeiro álbum póstumo do cantor com músicas inéditas supostamente gravadas antes de sua partida. Randy Jackson, seu irmão, chegou a questionar a veracidade das faixas na época, o que levaria a várias investigações sobre a produção do trabalho no futuro.
Em 2014, Vera Serova, uma ávida fã de Michael, processou a Sony Music e os produtores Edward Cascio e James Porte por fraude, alegando que ao menos três canções não foram gravadas pelo artista. Quatro anos depois, em 2018, a gravadora admitiu que as faixas continham vocais falsos, mas foi retirada do processo, que permanece até hoje em investigação. Em janeiro desse ano, o governo da Califórnia acusou a empresa de “fugir de sua responsabilidade com acusações enganosas”, uma vez que o disco foi promovido como uma coletânea de faixas interpretadas pelo cantor, embora já tenha sido comprovado que nem todas foram.
Mais recentemente, os representantes de Prince também foram à Justiça se opondo ao lançamento de uma série de obras póstumas do guitarrista, falecido em 2016. Exatamente um ano após a morte do artista, seu engenheiro de som, Ian Boxill, e a gravadora Rogue Music Alliance planejavam o lançamento de “Deliverance”, um EP póstumo com materiais descartados, mas foi acusado pelos administradores do espólio do cantor de violação contratual e apropriação das músicas, negando-se a entregar as gravações que tinha aos seus herdeiros.
Depois de alguns dias disponível, o EP foi removido das plataformas de streaming em meio a acusações da família do cantor a RMA, a quem alegavam estarem visando o próprio lucro por meio do trabalho de um artista morto. Quão ético seria homenagear um artista exclusivamente para o próprio benefício, sem envolver sua família ou seus representantes?
Os lucros de um trabalho musical podem ser repartidos de diferentes formas, devido a vários fatores legais, incluindo o que pode estar ou não presente em seu testamento — o que justifica manifestações públicas como as de Anderson .Paak e Lana Del Rey. Contudo, podem ser várias as brechas que o contrato com uma gravadora podem ter em relação à distribuição dos ganhos, principalmente quanto aos direitos autorais, o que torna cada lançamento uma incógnita.
Entre artistas mais novos, a situação é ainda mais incerta, já que muitos deles se vão sem sequer deixarem um testamento por conta da idade. Nos últimos anos, vários jovens talentos partiram prematuramente, como Pop Smoke, Juice WRLD, XXXTENTACION e Lil Peep, deixando para trás gravações inacabadas que foram posteriormente convertidas em discos lançados em sua memória, mas que desconhecemos o destino dos seus lucros.
Além da renda ser um mistério, a qualidade dos trabalhos também é considerada inferior pela crítica por se tratarem de projetos incompletos e fora de seu contexto. São várias as obras póstumas lançadas em memória de artistas que se foram, mas pouquíssimos os casos que realmente agregaram algo positivamente ao seu legado, apenas aos próprios números.
A música existe por causa dos artistas, que continuam sendo desvalorizados, desrespeitados e descreditados mesmo depois de partirem. Podem ser diversas as circunstâncias que podem envolver a morte de alguma celebridade, e cada um deve ser compreendido à sua própria maneira. Por isso, não é possível afirmar que há uma resposta certa em relação à legitimidade de lançamentos póstumos. Entretanto, preocuparmo-nos com o legado de nossos ídolos após a sua morte e os fins comerciais por trás dela somente nos revela o quão pouco a indústria musical avançou nas últimas décadas.