Considerado o maior evento da Indústria Musical, o Grammy Award ainda se baseia no racismo, xenofobia e machismo para estruturar um sistema segregativo que impede a conquista das minorias em espaços de sucesso e vitória na sua premiação.
“Mande o Grammy se f***** com essa merda de 8 nomeações e 0 vitórias.” Jay Z em parceria com Beyoncé na canção Apeshit já demonstrava seu descontentamento com a Academia. E embora Stevie Wonder se consagre com três Álbuns do Ano, artistas negros parecem viver em um redomoinho de boicotes e falta de representatividade.
O cantor canadense The Weeknd foi alvo recentemente desse grande sistema discriminatório. Em uma era repleta de recordes e aclamações, o artista se viu negado juntamente com seu projeto, “After Hours”, para todas as nomeações do Grammy. Isso nos instiga a entender acerca desse racismo estrutural que está presente não só no círculo social, mas principalmente nas grandes indústrias.
O poder do machismo no Grammy
Em 2020, a ex-presidente do Grammy, Deborah Dugan, acusou a Academia de Gravação, cujos membros fazem as escolhas dos vencedores anuais do prêmio, por uma série de denúncias que, segundo ela,
“há claros conflitos de interesses e negociações indevidas por parte dos membros do Conselho e irregularidades na votação em relação às indicações ao Grammy Awards.”
Além disso, a ex-presidente ainda indagou em um compilado de acusações os passos ilícitos que o processo de indicações o Grammy realiza.
Conforme Dugan, alguns membros do “comitês secretos” que escolhem as nomeações possuem relação com os artistas indicados. Ainda de acordo com a ex-presidente, os integrantes do comitê manipulam as indicações para que canções ou discos específicos sejam indicados quando Ken Erlich (produtor da premiação) deseja a execução de alguma música durante o show.
Dentre essas alegações, Deborah denuncia Neil Portnow, ex-CEO da Academia, de “supostamente estuprar uma artista” e ainda revelou que o conselho “estava ciente do crime.” A artista não teve seu nome revelado, mas foi identificada como “estrangeira”.
Por meio de contextos como esses, a Academia e a premiação se revelam como poços misóginos, manipulativos e massivamente clubistas que desempenham por meio do poder que possuem a deturpação, violação e desvalorização da imagem e do corpo da mulher, além das ações processuais das indicações de caráter descredibilizante e duvidosos.
Ausência feminina
Na 60º edição da premiação, muitos criticaram o número reduzido de mulheres indicadas. O número de vencedoras foi ainda menor; Alessia Cara foi a única entre as principais categorias a conquistar o gramafone. Assim, questionado pela Variety, o até então presidente do Grammy, Neil Portnow, declarou que era uma questão de as mulheres se “posicionarem”.
“Eu acho que tem que começar com…mulheres que tenham a criatividade em suas almas e corações, que querem ser musicistas, que querem ser engenheiras, produtoras e querem fazer parte da indústria no nível executivo… Elas precisam se impor porque acho que elas seriam bem-vindas.”
Entretanto, Portnow talvez não tenha observado o meio em que trabalhava. As artistas femininas são em sua grande maioria donas de grandes perfomances, entregando para o público muito além da voz e canção. A incorporação, o trabalho árduo, os conceitos e super produções são sempre desenvolvidos por mulheres na indústria da música.
De Nina Simone, Madonna e Janet Jackson a Lady Gaga, Ariana Grande e Beyoncé, o mercado musical detêm de uma longa lista assinada e encabeçada por mulheres. Ao contrário dos homens, infelizmente, elas ainda precisam reforçar seu espaço e seu poder no âmbito artístico.
As cantoras Katy Perry, Dua Lipa e P!nk se posicionaram contra o comentário. Sendo assim, uma equipe de mulheres executivas da música, como parcela do movimento Time´s Up contra a desigualdade de gênero, exigiram a renúncia de Neil. Após a declaração e onda de critícas, Neil Portnow não renovou seu contrato em julho de 2019 e anunciava o fim do seu cargo na entidade.
Racismo no Grammy
O Grammy Award sempre se viu cercado de comentários e posicionamentos feitos por artistas negros contra a premiação. O público e diversos artistas já falaram sobre como a questão racial se sobrepõe aos requisitos ao prêmio, e como esse sistema racista usado pela Academia cria obstáculos para que os projetos artísticos de pessoas negras sejam mais difíceis de serem reconhecidos.
Em 2017, o cantor Frank Ocean se negou em se apresentar no evento como um manifesto contra o racismo. O artista ainda publicou uma carta em que explicava o motivo de sua ausência e pontuou os episódios de racismo que o Grammy reproduz em suas categorias e vitórias.
Na verdade, eu queria participar da homenagem ao Prince, mas depois percebi que meu melhor tributo ao legado desse homem seria continuar sendo eu mesmo fora disso e bem sucedido. Vencer um programa de TV não me consagra bem sucedido. ‘Blonde’ vendeu um milhão de cópias sem uma gravadora, isso é ser bem sucedido. Eu sou jovem, negro, talentoso e independente… Esse é o meu tributo.
Nesse sentido, a rapper Nicki Minaj se prontificou em relatar sobre o fato de nunca ter conquistado um gramafone, em resposta a um fã no Twitter. A exclusão teria ocorrido nas decisões do produtor do Grammy, Ken Erlich.
Nicki contou mais sobre isso no 13º episódio do seu programa, Queen Radio:
Ademais, os casos de racismos são recorrentes no evento até mesmo quando ainda se premiam artistas negros, que ganham maior representatividade nas categorias de R&B. Isso faz com que suas presenças sejam notadas apenas nessas divisões categoriais, sem serem agraciados pelas principais da noite.
Na 63ª edição do prêmio, o rapper Tyler, the Creator ganhou o Melhor Álbum de Rap por “IGOR”. Apesar de feliz pelo reconhecimento, o artista refletiu sobre os estereótipos e lugares de “pertencimento” em que os negros são colocados nas categorias.
“Por um lado eu estou muito grato que o que eu fiz pode ser reconhecido em um mundo como esse… mas é péssimo que sempre que nós, e eu quero dizer caras que se parecem comigo, fazemos alguma coisa que transcende gêneros ou coisa assim, eles sempre colocam em alguma categoria urbana ou de rap.“
Além disso, o artista criticou a denominação “urbana”:
Eu não gosto dessa palavra ‘urbana’. Pra mim, é só uma forma politicamente correta de dizer a palavra com ‘n’ [em referência a ‘nigga’, termo em inglês racista quando usado por não-negros]. Então quando eu ouço isso, eu fico tipo, por que a gente não pode ser indicado pra categoria pop?
Ou seja, muito dessa afirmação feita por Tyler pode ser vista nos últimos acontecimentos ao cantor Abel (The Weeknd). O canadense submeteu seu álbum as categorias de pop, pois o seu projeto faz jus a esse gênero. Porém, como antes dito, não recebeu sequer uma nomeação.
A situação esnobe gerada pelo Grammy com The Weeknd é consequência do enquadramento e seletividade que incluem artistas negros específica e exclusivamente as categorias Urban, R&B e Rap.
E por isso, muito se pergunta: das 79 indicações de Beyoncé ao maior prêmio da música, por que nenhuma dessas conquistas se direcionaram das categorias principais? São 24 vitórias e somente dois gramafones não se estendem aos gêneros Urban/Rap/R&B, sendo que a artista é a cantora feminina mais indicada na história.
A xenofobia do Grammy que atravessa continentes
Se com pretos o racismo velado é descrito por ritmos musicais, a xenofobia aos não-estadunidenses têm nome e sobrenome. As categorias “Latinas” que separam os artistas não nascidos em território norte-americano nunca pouparam de soar um tanto quanto xenofóbicas. A segregação e distanciamento em que esses cantores e cantoras são postos revelam muito a crença separatista que a indústria musical do Estados Unidos impõe.
Aclamada por todos, a colombiana Shakira só detém 16 Grammys, no quais 11 pertencem ao Grammy Latino e 5 ao Grammy Awards dos EUA. Entretanto, somente dois não são caracterizados na categoria latina: Melhor Parceria de Pop por “Beautiful Liar” e Melhor Parceria de Pop por “Hip’s Don’t Lie”, todas interpretadas em inglês.
Enquanto isso, aos artistas brasileiros tudo se distancia mais ainda. Desde sua criação, apenas 14 brasileiros já saíram vitoriosos no Grammy Awards. O destaque fica a João Gilberto e Stan Getz em 1965 na categoria Melhor Álbum do Ano, o maior da noite, pelo disco “Getz/Gilberto”. Todavia, nos 20 anos de Grammy Latino, apenas o brasileiro Ivan Lins venceu, na sua 6ª edição, o prêmio de Álbum do Ano por “Cantando Histórias”.
Bem como os asiáticos que fazem história pela primeira vez na competição. O grupo sul-coreano BTS nomeado na última terça-feira na categoria Best Pop Duo Group, integra como indicação o single “Dynamite” do recente disco “BE”. No entanto, uma canção na língua inglesa de um grupo da Coreia do Sul ainda indica as barreiras linguísticas que artistas estrangeiros precisam enfrentar.
Além disso, em abril desse ano, o grupo lançou “Map of the Soul: 7”, que instantaneamente se tornou um sucesso comercial e mundial, mas que mesmo assim não se viu reconhecido nas categorias do prêmio. O ato coreano chegou a participar da premiação de 2020, porém, em uma aparição com menos de 1 minuto ao se juntar no palco com Lil Nas X para a interpretação do sucesso estrondoso “Old Town Road”.
A imagem do conjunto foi usada durante toda a propaganda da 63ª edição do Grammy Awards, o que levou a ansiedade dos fãs por uma grande performance e momentos de destaques.
Mudanças no cenário
É hora então de fazermos diferença em contrapartida a todos esses episódios que evocam um sistema discriminatório estrutural. O público, os artistas não racializados, os homens e todos os que possuem poder precisam dar voz aos que são atacados e repelidos de almejarem o triunfo em sua carreira.
A troca da bancada, o acesso a transparência e o protesto por transformação requer a união de todos. Apesar de tratarmos de uma indústria gigantesca e milionária, o Grammy Awards ainda é o retrato da sociedade e do sistema poderoso que são sustentados pelo patriarcalismo, a dominação branca, europeia e estadunidense, que propostos pelos mais influentes, impossibilitam a tomada pelas minorias e dificultam seu êxito.
É inaceitável o descaso com os artista negros, asiáticos, latinos e as mulheres. Faz-se necessária a mudança no cenário grandioso da indústria musical. Isso indicará que a sociedade está dispostas a realizar atos transformativos que há décadas suplicam por remodulação.