Os Jogos Olímpicos de Tóquio entram para a história como a edição em que só depois da pira olímpica ser acesa é que muita gente acreditou que, de fato, ela ocorreria. Faltando apenas três dias para a cerimônia de abertura, com algumas competições já ocorrendo e praticamente todas os atletas já presentes, o próprio comitê organizador não descartava o cancelamento das Olimpíadas em tempos de pandemia. Mesmo assim, a capital japonesa sediou o evento – em meio a um estado de emergência devido ao aumento exponencial de casos de Covid-19.
No entanto, quem esperava encontrar nos Jogos Olímpicos um refúgio de todo o resto que está acontecendo no mundo, levou um banho de água fria. A realidade se escancarou ao longo dos 17 dias de jogos.
O primeiro choque foi logo na cerimônia de abertura. Ao invés de um espetáculo à altura de toda a extravagância japonesa, respeito. Depois de mostrar ao mundo como se reconstruiu no pós-Segunda Guerra, sediando os jogos de 1964, Tóquio levou uma mensagem de que, com calma, vamos nos recompor. Uma cerimônia alinhada a uma atualização no Lema Olímpico, algo sem precedentes, já que que foi instituído pelo Barão de Coubertin no século 19: além de “mais rápido, mais alto, mais forte” (Citius, Altius, Fortius), agora, os jogos também são construídos “juntos” (Communis).
Até as tradicionais e tão simbólicas entregas de medalhas passaram por uma mudança. Ao invés de serem colocadas no peito dos atletas pelos representantes máximos do seu esporte, elas foram pegas pelos próprios atletas em uma bandeja – não deixa de parecer uma conquista a mais, literalmente, pegar uma medalha. Nas entrevistas com os atletas, outra surpresa: teve medalhista que, eufórico, quebrou os protocolos sanitários e abraçou repórter ao vivo. Depois, quando quis repetir o feito, pediu autorização, mas o repórter achou melhor manter o devido distanciamento.
A saúde mental no centro das Olimpíadas da pandemia
Nunca falamos tanto sobre saúde mental, ainda mais em tempos pandêmicos – e esse assunto também ganhou ampla discussão durante os Jogos Olímpicos.
Ser “mais forte” vai muito além da força física. Simone Biles surpreendeu o mundo ao abrir mão de competir em diversas modalidades da ginástica artística. A ginasta número um do mundo decidiu priorizar a si mesma, focando na saúde mental.
De quebra, Simone ajudou a colocar um assunto tão delicado no centro das discussões, em meio à uma competição reconhecida por atletas que dão o máximo de si (!!!). O ato fez a própria imprensa se questionar: será que a cobertura que trata atletas como heróis invencíveis também não está por trás disso?
E como pode a mesma modalidade ter dado tantas alegrias ao Brasil? Com a conquista da prata e do ouro, Rebeca Andrade fez história não apenas por ser a primeira mulher da ginástica brasileira a se tornar medalhista olímpica. Preta, de origem humilde, abandonada pelo pai, passou por três cirurgias e pensou em desistir. A mãe não deixou. Rebeca se fortaleceu psicologicamente e, quando se sentiu bem consigo mesma, chegou onde sempre quis estar.
Estar no lugar “mais alto” significa, também, ter que experimentar a queda – inclusive literalmente. A corredora holandesa Sifan Hassan incorporou todo o espírito olímpico durante a eliminatória dos 1.500 metros. Tropeçou na queniana Edina Jebitok, caiu, foi para o último lugar, ultrapassou todas as competidoras, e terminou em primeiro lugar, classificada para a final.
Já ser “mais rápido” é questão de opinião. Ao conquistar o bronze, o terceiro lugar de Bruno Fratus foi a consagração de mais de uma década dedicada à natação. Depois de ficar perto do pódio, em Londres-2012, amargurou o sexto lugar na Rio-2016 e virou meme ao reagir com uma ríspida sinceridade à pergunta de uma repórter: “tô felizão”. Ele se desculpou ainda à época e, de volta a 2021, depois do sonho da medalha, reconheceu que, agora sim, estava “felizão”.
“Será que vale a pena?”
A jornada nem sempre é fácil, claro. E as entrevistas com os atletas brasileiros ressaltaram isso. Logo após se tornar o primeiro vencedor olímpico da história do surfe, Ítalo Ferreira foi às lágrimas ao lembrar de quem o levou até ali. Dedicou a medalha a avó, que morreu em 2019, e emocionou até mesmo o repórter Guilherme Pereira, da Rede Globo, que também não segurou as lágrimas ao recordar Ítalo sobre o passado em Baía Formosa, no Rio Grande do Norte, onde começou no surfe com uma tampa de isopor.
Sim, nós vibramos com as pratas históricas de Kelvin Hoefler e Rayssa Leal na estreia do skate como modalidade olímpica. Mas também ficamos sem palavras com o desabafo de Altobeli Silva, que concorreu no altetismo. Finalista na Rio-2016 e medalhista de ouro nos jogos Pan-Americanos de Lima, em 2019, o atleta comoveu o Brasil em uma entrevista sincera logo após ser desclassificado dos 3 mil metros com barreiras.
“Será que vale a pena? Se dedicar…”, contou Altobeli ao SporTV. “Estou me sentindo muito mal. Chateado, porque eu sei o quanto eu treinei, o quanto batalhei, o quanto abri mão. É uma frustração muito grande, porque quando você não treina, não se dedica, dá ‘migué’, vai para festinha, é uma coisa. Mas quando você abre mão de tudo isso, se isola, espera um ótimo resultado e acontece o que aconteceu, eu sinceramente fico sem entender”, completou.
A frustração também tomou conta de Bruninho logo após a derrota da seleção brasileira de vôlei, que saiu sem um bronze sequer. O capitão reconheceu que teve uma parcela de culpa no resultado desfavorável, e disse sentir principalmente pelo técnico Renan Dal Zotto, que enfrentou a Covid-19 após passar por uma traqueostomia e duas intubações.
Se uma vitória como a de Hebert Conceição, no boxe, por nocaute, já parece distorcer a realidade para o atleta (que chorou, dançou e depois gritou), o que dizer de uma derrota amarga?
Nas Olimpíadas da pandemia, teve medalha de prata e de bronze que valeu muito mais do que uma de ouro. Teve resultado que, mesmo fora do pódio, valeu por toda uma carreira. E, sobretudo, lembramos que a alcunha de herói é para as figuras mitológicas que inspiraram a realização dos jogos. Acima de tudo, os atletas são humanos.
O que fica não é, necessariamente, a resposta para a pergunta “Será que vale a pena?”, mas uma outra reflexão: o que vale a pena? A resposta pode estar logo ali, em Paris-2024 – ou em qualquer lugar no futuro.