in

Entrevista: Urias fala sobre visibilidade trans, álbum e turnê

Artista lançou recentemente seu primeiro álbum, “FÚRIA“

Foto: Divulgação

Parecia que Urias já percebia, há anos, que estava prestes a se tornar um dos grandes nomes do pop brasileiro na atualidade. O que era para ser um teste para ver se as pessoas gostariam de escutar sua voz cantando no YouTube funcionou muito bem, fazendo a artista chegar onde chegou hoje com sua carreira – com muita preparação artística desde cedo.

Nascida e criada em Uberlândia, Urias começou a desenvolver seu lado artístico ainda criança. Através da dança e teatro, percebeu que gostava de fazer o que estava fazendo, era apaixonada pela moda e tinha o sonho secreto de ser cantora. 

Na minha cabeça era um grande escape. E sem querer essas coisas vão te moldando“, diz ela em entrevista ao Tracklist. Por mais que gostasse de todas essas coisas, nunca pensou que de fato fosse algum dia ter isso levado a sério. “Hoje em dia eu olho pra trás e penso ‘nossa, tudo isso aconteceu pra eu me tornar o que eu sou hoje’, mesmo que sem querer. Não sem querer, mas sem esse planejamento base, de ‘olha, isso aqui é a base, estude isso, que você vai chegar lá’. Porque na minha cabeça não tinha isso, na minha cabeça isso nunca seria uma profissão. Jamais. 

Em sua cidade, desenvolveu amizade com Pabllo Vittar antes mesmo da fama de ambas. Conforme Pabllo foi crescendo, foi ajudando Urias a subir junto. Até hoje ainda fazem o mesmo, tendo como exemplo mais recente a parceria das duas na turnê de Pabllo em breve pela Europa.

Urias começou modelando em sua maior exposição pública. Conforme foi percebendo que a internet era um grande impulsionador de trabalhos artísticos, começou a testar e subir vídeos de cover em seu canal para ver se funcionava. Daí, surgiram as ideias de single de “Ice Princess”, música de Azealia Banks e “Você Me Vira a Cabeça”, de Alcione.

O ponto definidor foi quando lançou “Diaba”, música que a fez tornar muito mais reconhecida. Agora em janeiro, lançou o seu estonteante primeiro álbum: “FURIA“.

Capa do álbum debut de Urias, “FÚRIA”, lançado no dia 13 de janeiro. Foto: Divulgação

Leia também: Review: “FÚRIA”, primeiro álbum de Urias, supera expectativas

Neste Dia da Visibilidade Trans e Travesti, em 29 de janeiro, celebramos Urias, mulher forte que lutou e ainda luta para conquistar o seu lugar, assim como tantas outras mulheres trans e travestis através de sua arte. Lutamos e apoiamos para que pessoas trans e travestis consigam cada vez mais espaço na indústria fonográfica, e que, acima de tudo, sejam respeitadas e vangloriadas por serem quem são.

Confira o bate-papo completo abaixo!

Entrevista com Urias

Primeiro, gostaria de te parabenizar pelo lançamento de “FÚRIA”. Achei incrível e o que você faz é excepcional em todos os aspectos. Quais foram as referências musicais que você trouxe nele?

Obrigada! Trouxe muita coisa que eu ouvia quando era criança, mas também muita coisa que eu ouvia enquanto fui crescendo. De pré-adolescência à adolescência… uma coisa meio “The Fame Monster” (Lady Gaga), “Yeezus” (Kanye West) também, “Broke With Expensive Taste” (Azealia Banks)… teve muita coisa assim, mas também teve Destiny Child, muita coisa da SOPHIE, Missy Elliot, bastante Lil Kim… e nossa, a Rihanna também. Me inspiraram e ajudaram muito a fazer o álbum. Essas foram mais ou menos as minhas referências musicais. 

O uso de outras línguas e ritmos latinos, como na música “Peligrosa”, “Aposta” e “Classic”, vem mais pela faculdade que você já cursou (tradução) ou você almeja outros mercados com isso?

Ah, eu almejo alcançar outros mercados também. Com certeza. A gente está sempre tentando expandir e tal, agora que a gente começou a perceber que o Brasil está se tornando pequeno para o que a música brasileira está se tornando. Tanto que a gente está levando para fora as minhas coisas. Eu almejo muito mais pessoas que moram em outros lugares ouvindo a minha música, a compartilhando e a vivendo. Com certeza almejo outros mercados, quero dar o próximo passo. 

Qual é a sua faixa favorita do seu álbum de estreia “FÚRIA” e por quê?

Eu tive vários momentos… teve momento que era “Explicito”, teve momento que era “Classic”. No momento agora, a minha favorita do álbum é “É Tudo Meu”. Porque eu falo de algumas coisas, é instrumental, é uma coisa meio… não sei… uma vibe meio densa, dark, sabe? A letra também… no momento eu estou mais em “É Tudo Meu”.

Sei lá, eu nunca vi ninguém no Brasil fazer nenhuma música assim. Não sei se existe ou não, talvez eu esteja bem desinformada. Daqui a pouco eu to aqui “ninguém faz como eu” e tem um povo fazendo há um tempão e eu não sei. (risos) Mas até então eu nunca ouvi.

No momento ela é a minha favorita. Mas a qualquer momento ela pode mudar.

A primeira vez que escutei “Tudo Meu” eu fiquei arrepiadíssima. Gosto muito dela. Se você pudesse escolher qualquer artista brasileiro para colaborar, qual seria sua colaboração dos sonhos?

Não sei… nossa, tem tanta gente, escolher uma pessoa! Mas eu vou jogar alto aqui, vou colocar Emicida. Quem sabe a gente chega lá? Começou a passar um monte de artista na minha cabeça, mas aí pensei “ah, vou jogar alto já que ela perguntou assim se puder qualquer um!”. Acho que o Emicida seria uma boa voz aí para somar no trabalho um do outro.

Falando em expandir para mercados internacionais, qual foi a sua reação ao receber o convite para abrir alguns dos shows da turnê internacional da Pabllo Vittar?

Fiquei muito chocada! Acabei de lançar o álbum e vou viajar pra outros países! Fiquei: “meu Deus! It’s happening! It’s going on!”. E eu fiquei muito feliz, com toda a situação num geral assim. Não só na parte profissional, sabe? Vou estar viajando a Europa inteira com uma das minhas melhores amigas… tiveram um monte de coisas que a gente ainda não viveu, porque a gente já viveu um montão de coisas, e ainda fazendo o que eu gosto de fazer… levando o meu trabalho para outro nível, um novo passo na minha carreira. Foi um convite que eu abracei, porque tem tudo para dar certo, nada para dar errado ali. 

Total! Deve ser incrível você sair de cara da pandemia pra fazer turnê na Europa junto da Pabllo e apresentar seu álbum novo.

Sim! Mas eu quero fazer minha turnê aqui no Brasil também, sabe? Bota aí na entrevista: eu quero fazer todos os estados. Lá da ponta até lá embaixo. 

Qual você acha que foi o ponto de virada da sua carreira? 

Não sei, tiveram muitos momentos que eu pensei “meu Deus!”. Mas eu acho que o álbum. A gente fez o álbum e foi pra… sendo bem sincera com você, eu acho que eu nunca falei isso em entrevista; foi meio tipo assim: “eu preciso de mais música para eu ter repertório, porque eu só tenho um EP“. (risos) 

Aí a gente fez o álbum na intenção de ter um repertório, mas de também contar história, de ter toda essa parte artística tanto visual quanto sonora, mas eu não fiz com intenção de entrar pra chart nenhum, pegar primeiro lugar em iTunes… a gente não fez pensando nisso. E quando isso aconteceu, para mim isso no momento, até então, essa foi a virada, entendeu?

Porque eu nunca tive contato com nada maior que isso! Talvez aconteça algo maior, tomara! Mas até então foi essa, porque eu não fiz um álbum pensando “essa aqui vai hitar”, sabe? Não que eu nunca vá fazer isso também, né, às vezes a gente tem que pensar em fazer hit. Mas não foi nessa intenção. Acho que a virada foi realmente esse primeiro lugar do iTunes Brasil aí, que eu realmente não esperava e só tenho à agradecer a todo mundo que acompanha o trabalho, que consome.

O clipe de “Diaba” é sem dúvidas um marco. Atingiu bastante gente e lembro que dentro da minha bolha chegou até pessoas que não acompanhavam tanto o pop brasileiro. Você sente que desde que lançou “Diaba” a percepção da mídia e do público geral de lá pra cá mudou de alguma forma? Até mesmo a recepção… de que forma você sente isso?

Eu percebo que eu fui mais levada a sério depois que eu lancei o álbum. As pessoas entenderam que eu não to aqui para dar close de bonita, que eu tenho algo para falar, que eu quero ser escutada e que eu vou me fazer ser escutada. Querendo me escutar ou não. 

Acho que o respeito dentro da classe artística – não estou falando de público, números, porque eu nem me coloco nesses lugares. Não é o foco do meu trabalho – mudou muito. Acho que as pessoas ainda duvidavam muito de mim, entende?  Acho que foi mais esse respeito artístico. 

Com “Diaba” eu já fui muito bem recebida por todo mundo. Pela crítica, pela classe artística, pelo público… mas de lá pra cá eu sinto que o respeito ao meu trabalho aumentou. O que é muito bom pra mim.

Vi em uma entrevista que você desde pequena é envolvida com as questões artísticas, como a dança, por exemplo. De que forma esse contato, desde cedo, ajudou a moldar a sua personalidade, onde você queria chegar e de quem você queria ser? 

Eu não sei te explicar. Porque quando eu fazia dança desde pequenininha, eu nunca pensei que eu fosse trabalhar com isso, sabe? Na minha cabeça eu só ia ser alguém se eu fizesse uma faculdade, me formasse, casasse e toda aquela história. Aquelas coisas de histórias de cidades. 

E aí eu achava isso. Então eu tinha a dança, o teatro, todas essas coisas de intenção artística na época na minha cabeça como um escape mesmo. Um hobbie. Eu ia fazer as coisas pensando “ah eu gosto muito de fazer isso aqui, então eu vou continuar fazendo isso aqui para nas outras áreas da minha vida eu não surtar”.  

Então enquanto eu crescia foi muito nesse lugar. Só que, olhando de agora pra trás, eu percebo que eu nunca deixei escapar isso. Por mais que eu estivesse fazendo cursinho pré-vestibular, trabalhando no telemarketing, eu arrumava um tempo e dava um jeito de fazer minha dança duas ou três vezes na semana. De apresentar com o grupo de dança nos finais de semana em festival pequeno de dança, de competição.

Eu poderia continuar fazendo dança, fazendo teatro e cantando a minha vida inteira, mas eu jamais iria pagar um aluguel com isso. Juntar um dinheiro e pagar as prestações de alguma coisa, sabe? Jamais pensei! Então eu meio que entendo que é meio difícil falar de destino, né? Porque também tem muitas variantes aí no meio do caminho. Mas parece que eu já sabia e não sabia ao mesmo tempo. Sei lá.

É realmente muito difícil você pensar que no Brasil você vai dar certo sendo artista e vai conseguir pagar conta sendo artista.

E em Uberlândia, que é uma cidade que gira mais ou menos em torno da universidade federal, quando eu estava na sétima série passando para a oitava, as coisas que mais nos perguntavam na escola era “que curso de faculdade você quer fazer?”. E você tem 13, 14 anos, e as pessoas estão te perguntando o que você quer fazer para o resto da sua vida. Você acabou de sair dos seus 10 anos de idade. 

E isso fica na sua cabeça reverberando, reverberando de uma maneira que tipo assim: você vê o prestígio que as pessoas recebem quando falam “quero ser médico, quero ser advogado, quero ser dentista”. E ninguém recebe o mesmo prestígio quando você fala que “ah, vou trabalhar com dança, quero cantar”. Então meio que isso vai se construindo na sua cabeça quando você vai crescendo e você não imagina que isso é uma profissão. 

Tanto que quando eu estava crescendo e via alguém famoso, eu sempre pensava assim: “ai, é uma vida muito boa. Ai ela é famosa, ela é rica, uma vida muito boa”. Imagina o que eu não teria que fazer para chegar perto de alguma coisa, sabe? 

Pelos holofotes, pelo menos atualmente, a gente consegue perceber uma evolução, assim dizendo, da aceitação na mídia e do público, principalmente jovens adultos e a nova geração, quanto à visibilidade e o reconhecimento de pessoas trans e travestis. Como você tem percebido essa questão? Ou você percebe diferença de tratamento/aceitação quando não há câmeras?

É completamente diferente. A gente percebe essa aceitação nesses últimos dois, três anos na mídia, mas é porque chegou num momento em que não dá para não falar da gente. 

A gente tira leite de pedra de uma maneira… A gente não tem estrutura de nada, não tem estrutura de educação, não tem estrutura de segurança, não tem estrutura de saúde. E a gente consegue fazer trabalhos com mais excelência que gente cis que tem dinheiro e estrutura para muita coisa, sabe? . 

Então chegou num ponto que não dá para não falar da gente, não dá para não citar a gente. Até chegar num ponto em que não vai precisar citar a gente, entendeu? Esse é o grande objetivo para mim.

Mas, dito isso, que não dá pra não notar a gente mais, que não dá pra fingir que a gente não existe mais, eu te digo que a aceitação acontece, ela está acontecendo. Eu posso falar da minha perspectiva por conta da qualidade do trabalho, por conta de onde chega o meu trabalho.

Agora, fora da mídia? A gente sabe que as coisas não são assim. O Brasil aí cada vez mais batendo recordes e entrando no décimo quinto ano sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo. 

Só no ano passado foram quase 150 pessoas que morreram só por ser trans. É como você falou: quando as câmeras estão desligadas, é outra coisa, com certeza. Não tenho nem como te dar outra resposta. Estamos caminhando lentamente, porque estamos com pernas fracas, pois cansadas de falar as mesmas coisas desde os anos 60. A gente não chegou agora – desde os anos 60. Estamos simplesmente cansadas de repetir as mesmas coisas. 

Então estamos andando lentamente, estamos sim sempre em movimento – uma travesti parada é uma travesti morta. Então a gente tá sempre em movimento, mas agora chegou a hora que a gente entendeu que não dá pra sair nos lugares sozinha. A gente precisa que a cisgeneridade acorde e olhe pra gente e diga: “não, realmente temos uma grande responsabilidade sobre isso, precisamos dar a mão pra levantar”.

Porque assim, a gente pela gente, a gente já faz mais que o possível e o impossível, entendeu? Pra mudar as coisas meio que depende de vocês, vocês que controlam os babados!

Você sente que a experiência da Linn da Quebrada no BBB escancarada para o mundo é meio que um sentimento geral de ser trans e/ou travesti hoje no Brasil, mesmo tendo a fama? O que você gostaria que mudasse?

Você veio pesada, hein? (risos) Eu gostaria que mudasse tudo, sabe? Porque a gente não tá pedindo demais… Não estou pedindo de volta tudo que roubaram. Eu estou pedindo respeito, a gente tá pedindo respeito. 

Tem um homem lá dentro (do BBB) que o nome dele é Pedro Scooby. Com certeza o nome dele não é Scooby, mas todo mundo chama ele de Scooby, entendeu? Ninguém chegou pra ele e falou “não vou te chamar de Scooby porque olho pra você e não vejo o Scooby”. E ele não precisou pedir nada. 

Eu vejo que a dificuldade das pessoas não é nem a palavra “dificuldade”. Porque não existe dificuldade.

Não tem como você olhar pra Linn, olhar pra cara dela, olhar pro jeito que ela gesticula, olhar pra ela falando dela mesma, olhar pros peitos dela e chamar ela no pronome errado. As pessoas escolhem fazer isso. É meio que o jeito da pessoa cis falar assim: “não, você não tem esse poder todo sobre seu corpo. Você não é isso. Eu não deixo”. É um jeito de impor poder, na minha visão. 

Eu não aceito. Eu não sei como aquela mulher tem a paciência que ela tem. Eu não sei se eu ia gritar ou se eu ia calar a boca, nunca mais falar nada de tanta raiva. Mas acho que é isso, é uma forma escancarada das pessoas entenderem que a gente não tá pedindo muito, a gente não está recebendo o pouco que a gente está pedindo. E assim: muito bom e muito ruim estar sendo televisionado, porque isso acontece o tempo todo com todas nós e é bom para o Brasil ver como fere a gente. E para verem que ela não está no papel de ensinar ninguém lá dentro. Mas eu espero que o nosso país aprenda muito. E realmente aprenda, entenda como é aqui fora para gente.

Se lá dentro tá acontecendo isso, e todo mundo sabe que tá acontecendo isso, está sendo filmado 24 horas, a gente entende porque que a gente tá morrendo tanto aqui fora. Ninguém tá nem olhando. E acho muito importante de ser a Linn que está ali. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *