Seja como uma forma de corrigir a voz ou usar exageradamente, o auto-tune é algo que a maioria dos artistas usa ou já usou, independente do motivo. Mas desde que o plug-in foi introduzido na indústria da música, há inúmeras discussões sobre a legitimidade do uso dele. E o mais curioso é que em pleno 2021, o uso ou não desse efeito ainda é uma grande questão – que até hoje tem uma aceitação muito negativa, tanto dos artistas, como do público. Quando assisti a série “This Is Pop” (Netflix) e “Mark Ronson e a Evolução do Som” (Apple TV), nos episódios que coincidentemente falam sobre auto-tune, elas me fizeram questionar ainda mais o porque essa expressão artística causa tanto impacto até hoje. De Cher à Billie Eilish, vem entender como esse efeito reverbera em vários segmentos musicais.
A origem do Auto-tune
O plug-in que causa tanto debate foi criado por Andy Hildebrand, um geofísico que trabalhava com a interpretação de dados sísmicos. Mas foi em 1997, que o cientista e os seus colegas de trabalho criaram o um software que não só reconheciam as ondas sonora, como também poderia agora remodelá-las, dando a origem ao auto-tune.
Entre as várias funcionalidades, o principal feito do programa é poder alterar a afinação e até tonalidade da voz. O que trouxe algumas vantagens aos artistas, que antes passavam longas horas focadas apenas na gravação dos vocais, mas que agora tinham esse tempo reduzido. Até se você não sabe cantar absolutamente nada, o auto-tune consegue resolver isso para você. E talvez aí que a polêmica entre a indústria começou.
Cher: O encontro do auto-tune com o pop
Principalmente no início, o auto-tune era usado de forma secreta. Com essa nova tecnologia, havia um certo medo de caso o público soubesse que o artista tinha usado, ele acabasse sendo descredibilizado. Mas esse segredo não se manteve por muito tempo. Tudo mudou, em 1998, quando produtor Mark Taylor alterou ao extremo o tom da voz de uma cantora. E essa cantora era nada mais, nada menos que a grande diva do pop, Cher. Quando “Believe” invadiu as rádios, o público sentiu algo de diferente em sua voz. Aquele efeito vocal, que quase parecia um robô, estava presente em cada canto de uma das maiores músicas do pop mundial. Mas mesmo que hoje saibamos que é claramente o uso do auto-tune, na época o produtor da música tinha tanto medo da recepção do público, que afirmou que tudo era apenas um pedal de vocoder.
A rejeição do auto tune e T-Pain
Os anos se passaram e cada vez o auto-tune foi sendo explorado de várias maneiras – as vezes mais escancaradas, outras mais por baixo dos panos- mas ele sempre esteve presente. No entanto, foi com a chegada de T-Pain que a coisa ganhou outra proporção. Inspirado pela música “If You had My Love”, de Jennifer Lopez, na qual a cantora usa em algumas partes o Auto-tune, o rapper ficou fissurado no efeito. Depois de muito procura pelo plug-in, quando T-Pain finalmente encontrou, ele viu como possibilidade de, a partir desse efeito, se diferenciar entre tantos lançamentos na época.
Ao lançar “I’m Sprung” o jogo mudou para o rapper, que em seguida lançou o primeiro álbum, em 2005, “Rappa Ternt Sanga”. Porém, mesmo com o sucesso que a música e o disco tiveram, ainda assim, T-Pain ficou mal visto pela indústria por um longo tempo, simplesmente por usar o auto-tune. “Sempre que eu vejo alguém ser o primeiro em algo, nunca é valorizado. Sabemos disso (…) É sempre quem vem depois que ganha mais respeito”, comentou T-Pain para o documentário da Netflix, This Is Pop.
E o mais doido de tudo isso é que ele só foi ganhar mais respeito, quando em 2013, fez parte do Tiny Desk, onde cantou as suas músicas em formato acústico pela primeira vez. Daí questiono: por que o artista teve que ganhar prestígio só quando ele mostrou a sua voz natural? O que isso muda no fato de suas canções continuarem com alta qualidade? Por que é necessária toda essa validação?
A nova visão sob o auto-tune
Foi quando Kanye West decidiu levar o auto-tune para o seu repertório, no álbum “808s & Heartbreak”, que o plug-in começou a ser melhor aceito e visto como inovador. Com essa abordagem, muitos artistas começaram a de fato usar o software, sem vergonha alguma. O que gerou uma certa divisão: artistas que usavam orgulhosamente o auto-tune x indústria que boicotava quem o usasse. Inclusive, a represália foi tão grande contra T-pain, que o fez entrar em um pesado período de depressão.
Ainda nesse mesmo contexto, toda uma nova geração de artistas começaram a incorporar e experimentar o uso do plug-in em suas produções, sejam internacionais ou nacionais. No entanto, o uso mais evidente que logo me veio a mente, foi toda a cena e estética do Hyperpop. A decisão artística de trazer não só produções mais “estouradas” e elevadas, reverberou principalmente nos vocais desses artistas. Que durante as músicas brinca, propositalmente, com o uso extremo do auto-tune, e muitas vezes quase que estridente ou como o próprio nome sugere, exagerado. Mas que no final, fazem total sentido com a estética do segmento, que busca o exagero, o futuro e a relação com tecnologia.
Nomes como SOPHIE, Slayyyterr e Charli XCX são conhecidas pelo o uso do plug-in de forma certeira e artística. A própria Charli XCX sempre foi muito aberta em relação ao uso dele, e defendeu, mesmo que muitas pessoas até hoje não entendam direito o propósito. Ah, em “Mark Ronson e a Evolução do Som”, o produtor entrevista Charli sobre todo esse processo e o uso da ferramenta em suas músicas, e até brinca com ela no estúdio com alguns sons com auto-tune!
No meio de todos esses questionamentos, acho que o ponto é: o auto-tune é apenas uma das fermentas que o artista pode brincar dentro do estúdio. Por que um artista tem que ser julgado e questionado sobre a seriadade do seu trabalho, apenas pelo o uso dessa ferramenta? O que o auto-tune tira de mérito do artista ser artista? Charli XCX, por exemplo, usa de forma consciente a ferramenta, reconhecendo também que certas notas não seriam alcançadas por ela. Outro exemplo é Kesha, que no inicio da carreira, usava bastante dessas distorções vocais em sua voz, e muita gente a subestimou, e nos últimos trabalhos vem provando cada vez mais a potencia de sua voz. E também tem, até recentemente, o caso de Billie Elish, na música NDA, que opta por esse uso do auto-tune bem no tom de voz dela. Muitas pessoas não entenderam, criticaram o seu valor artístico por isso, ou até a habilidade de cantar, que fez FINNEAS, seu irmão e produtor, botar seu ponto de vista no Twitter.
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No fim, esse texto não tem uma resposta do que é certo ou errado. É prazeroso ver artistas cada vez mais elevando o nível e se arriscando em novos experimentos. Mas, se você me perguntar, eu sou totalmente a favor do uso. Acho genial, por exemplo, a forma que Charli XCX o incorpora na sua arte. O auto-tune traz outra dimensão para a música e uma visão que faz total sentindo dentro da proposta da sua carreira. Então, independente se o auto-tune é feito para uma inovação ou se é para o artista que não sabe cantar de forma tão afinada, por que simplesmente não deixar fluir e coexistir na música?