Foi ao ir contra as expectativas que esperavam de sua arte que a cantora e compositora britânica Charli XCX alcançou a sua liberdade e autenticidade artística. Depois de 2014, quando a cantora estava no auge do seu sucesso, a britânica optou ir contra a corrente das músicas radiofônicas. Ao seguir seu instinto e mais livre do que nunca, ao longo dos últimos anos Charli encontrou sua voz dentro do mundo da música e provou que quebrar as regras da indústria estava em seu sangue. Mostrando que sempre está pronta para mais um desafio, Charli XCX encapsula tudo que aprendeu nos últimos anos, influenciada pela música eletrônica e o pop dos anos 80, em “CRASH”, seu novo álbum de estúdio, lançado nessa sexta-feira (18).
Antes da colisão pop
Olhando um pouquinho para trás, antes da chegada do “CRASH”, Charli teve que passar por diversas rupturas de expectativas, especialmente com sua gravadora. Afinal, foi após o radiofônico “Sucker“, que Charli decidiu seguir seu caminho e fazer o que de fato queria. Ainda que fosse arriscado, foi em 2016, com o EP “Vroom Vroom”, que a cantora se jogou ao mundo da PC Music, que ainda era um embrião na música alternativa e pop. Mas foi nesse ambiente, principalmente ao lado de SOPHIE e A.G. Cook, que a britânica teve a liberdade de experimentar novas possibilidades e se reconstruir como artista. E de fato, foi o que ela realmente conseguiu!
A partir desse momento, Charli foi se encontrando dentro do movimento, até lançar as suas mixtapes “Number 1 Angel” e “Pop 2”. Que acabou conquistando o coração dos críticos, fortaleceu a sua fã-base e a consagrou dentro desse movimento musical da PC Music e do hyperpop, que até hoje se mostra cada vez mais presente na música mainstream.
E foi em 2019, no álbum “Charli”, com toda a sua bagagem e experiência adquirida, que ela conseguiu entregar um trabalho que transita de forma bem equilibrada entre as experimentação do hyperpop, com muitos feats e sonoridades mais comerciais. Diretamente ou não, deu mais segurança e sustento para o nascimento da era “CRASH”.
De alternativa à popstar
Antes mesmo da era “CRASH” começar, as expectativas para o álbum já eram enormes. Nas fases inicias do disco a própria cantora auto intitulava o projeto como o “Janet Album”. Ou seja, que seria majoritariamente inspirado pelo repertório de Janet Jackson, a grande rainha do r&b e pop. Então, o que tanto se questionava era como Charli, que se estabeleceu tão bem no hyperop e PC Music, iria se misturar com essa referência oitentista? Será que ia dar certo? Bom, já adiantando: deu… e de forma majestosa, autêntica e, porque não, chique?
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Assim que esse novo capítulo de sua carreira estava prestes a começar, Charli XCX prometeu que seria o seu momento mais pop. Não só em questão da sonoridade, mas como em todo seu comportamento. Criando assim o seu novo alter ego, baseado em um arquétipo da “main pop girl”: Muitas aparições na TV, rádios, looks icônicos, performances com coreografia, fotos típicas de paparazis. Ou seja, o pacote completo!
O conceito por trás do seu novo arquétipo é de uma popstar sedenta pelo sucesso, que acaba vendendo a sua alma para o demônio. O que fica bem explícito nos ensaios e estética do álbum, com essa pegada bem femme fatale. A impressão que fica é de que tudo é um grande comentário sobre a indústria pop e como esse artistas são vistos, e até muitas vezes descredibilizados. “Esse disco também é um comentário sobre o que autenticidade é. Eu acho que os artistas sentem que eles precisam mesmo escrever suas próprias músicas, que eles dirigem seu próprio videoclipe, de que eles são o cérebro por trás de tudo. E quanto mais eu fico velha, eu começo a me importar cada vez menos com tudo isso, porque eu sei que posso escrever uma ótima música pop e que eu sei comunicar a minha própria visão”, comentou a cantora em entrevista a Rolling Stone.
Em uma entrevista com Zane Lowe, algo que Charli comentou sobre a era como um todo é o movimento de subverter sua própria música. Afinal, o que a fez chegar aqui foi exatamente isso. Por muito tempo a cantora rejeitava esse status e estrutura esperada de uma artista pop, construída pela indústria e gravadoras. Mas agora que o público já tem essa expectativa e espera a atitude rebelde e sonoridade experimental de suas músicas, isso a fez entrar em uma zona de conforto. Então, porque não começar a jogar esse jogo da indústria como mais uma forma de rebeldia a seu próprio status conquistado?
Foi aí que Charli viu a oportunidade de se reinventar e surpreender todos, ao seguir os antigos modelos da música pop e o que uma popstar deveria fazer. Sendo uma forma de ela mesmo se desafiar e subverter o próprio trabalho. No final, é tudo uma grande metalinguagem, né?
A autenticidade e maturidade de “CRASH”
Guiado pelo pop oitentista como base para todo o desenrolar do álbum, a sequência de canções flui de uma forma tão natural e certeira, que não tem espaço para sobras ou exageros. O projeto é bem lapidado, direto ao ponto, tudo na medida certa. Até a música mais fraca do álbum, “New Shapes”, dentro do contexto do projeto se torna um pouco melhor. A artista sabe aproveitar o seu espaço, qual mensagem quer passar, a direção musical para cada música e o que elas representam em cada segmento. Além de provar, que ainda é possível trazer referencias do pop dos anos 80, com toques de modernidade, sem soar datada ou genérica.
Os melhores momentos de “CRASH”
O “CRASH” passa por várias ramificações da música pop. Seja pelos momentos mais clássicos e dance dos anos 80, com aquele baixo, groove e sintetizadores característicos, na trinca “pop perfection” do álbum, com “Baby”, “Good Ones” e “Yuck”.
Como também em partes que trazem de volta aquele pop eletrônico, estilo Summer Eletrohits, com “Beg For You”, que tem sample de “Cry For You”. O clima house em “Use To Know Me”, com sample de “Show Me Love”. Além da confessional e dançante “Lightling”, que invoca a produção dos anos 2000, mas se atualiza com os leves toques do hyperpop, da onde tanto conhecemos a Charli.
Outros destaques que brilham também no álbum são seus momentos mais vulneráveis, como na baladinha “Every Rule”, a primeira música escrita para o projeto. A música é uma dedicatória ao início do seu relacionamento da época, que inclusive hoje não existe mais. Charli narra como eles se conheceram, com leves detalhes que ajudam a criar uma cena na cabeça do ouvinte. Trazendo até uma justaposição, ao admitir que quando conheceu seu parceiro ainda estava com outra pessoa. É bem crua, direta e sincera!
Por fim, “Move Me” também merece o devido destaque por, ao meu ver, ser uma das composições mais sensíveis e honestas da artista. Nela, Charli se questiona porque mesmo gostando tanto dessa pessoa, os seus hábitos autodestruitivos e inseguranças acabam limitando a sua capacidade de demostrar afeto a essa nova relação. De tal forma que não consegue se doar como de fato gostaria. Forte, né?
Vale a pena?
O álbum e a era como um todo é a demonstração perfeita da potencia e genialidade de Charli XCX, com o seu projeto mais maduro e coeso até agora. Elegante e na medida certa, as produções bem polidas evitam clichês, que poderiam facilmente acontecer, mostrando como ainda é empolgante fazer música pop em 2022. E o melhor de tudo: do jeito mais autêntico possível! Mesmo fora de sua zona de conforto, com performances coreografadas e dançarinos, mais presente no olhar público e na imprensa, ainda sim a cantora transparece estar em um dos melhores momentos da carreira, se mostrando cada vez mais confiante e livre com sua arte e consigo mesma.
Por fim, “CRASH” consegue ser comercial, mas com muita alma. Sem apagar tudo que Charli vem construindo artisticamente nos últimos anos. Mostrando que sim, é possível seguir seu extinto e ter controle da sua própria narrativa, dentro dos mecanismos da indústria pop.
NOTA: 9/10