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Review: Tyler, The Creator expõe seu lado mais honesto em “Chromakopia”

Em novo disco, o artista se abre sobre os traumas familiares, medos e inseguranças no auge de sua maturidade pessoal e criativa

Foto: Reprodução

Em um mundo de pressões comerciais cada vez mais pujantes e músicas cada vez mais plastificadas, é admirável acompanhar artistas que se mantenham fiéis à sua própria arte. Foi assim que Tyler, The Creator se consolidou como um dos nomes mais inventivos da indústria: mantendo a sua autenticidade intacta, criando experiências imersivas em seus trabalhos e constantemente desafiando-se a se reinventar.

O sucesso de seu novo álbum de estúdio, “Chromakopia”, é um dos exemplos que enfatizam como a originalidade também colhe frutos. Lançado na última segunda-feira (28), o disco tem quebrado recordes de venda e se consolidado como o trabalho mais bem-sucedido de Tyler até então. É curioso, no entanto, que a repercussão encontre seu ápice em sua obra mais pessoal: pela primeira vez, o cantor dá voz aos próprios medos e inseguranças de maneira tão aberta e verdadeira.

“Chromakopia”, de Tyler the Creator, é a representação de um artista no auge de sua maturidade, mas também de sua liberdade criativa. O disco é um olhar profundo para dentro de si à procura de respostas —  um exercício que nos revela a versão mais honesta e tocante de um artista ao qual já pensávamos ter visto de tudo. Tyler segue leal à sua inquietação, a principal marca de um dos maiores nomes do hip-hop atual.

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“Chromakopia”, de Tyler The Creator, é uma produção afiada como nunca

Nos dias atuais, são pouquíssimos os artistas que ousam criar sozinhos os próprios álbuns na íntegra, e essa talvez seja a principal marca registrada de Tyler em sua carreira. Em mais um disco com “todas as músicas escritas, produzidas e arranjadas por Tyler Okonma”, o cantor desfruta de sua liberdade criativa para construir um novo universo.

Pessoal e artisticamente falando, “Chromakopia” é um disco fundamentado no amadurecimento — não apenas na riqueza de sua sonoridade, mas principalmente em suas composições. A produção segue a curva de evolução dos últimos anos e, mais uma vez, é um dos grandes destaques do disco. Assim como é costume, a experiência de ouvir o álbum na íntegra continua sendo um deleite, graças ao cuidado de Tyler em amarrar as canções e envolvê-las em uma narrativa coesa. 

St. Chroma” dá início ao álbum em um ritmo frenético, com uma marcha acelerada que explode em sintetizadores, sirenes e linhas de baixo. A transição para “Rah Tah Tah” marca um dos momentos mais eufóricos do trabalho e reafirma o seu auge como rapper no meio musical. “O maior da cidade depois do Kenny, isso agora é um fato”, rima, colocando-se ao lado de seu conterrâneo em Los Angeles, Kendrick Lamar.

O primeiro single, “Noid”, também destaca como os talentos de Tyler como produtor potencializam a força de suas canções. A guitarra do artista brasileiro Pedro Martins guia a música sobre as paranoias da fama e da exposição midiática, até que a mudança de batidas dá um clima introspectivo à faixa. A criatividade com os samples também é uma assinatura do produtor que segue presente: enquanto o refrão de “Noid” deriva de uma banda zambiana de rock dos anos 70, o Ngozi Family,Tomorrow” usa o violão da carioca Rosinha de Valença em “Summertime” para conduzir o instrumental.

O que mais chama atenção na produção de Tyler é a sua versatilidade, desenvolvendo sonoridades densas tanto para as músicas mais agitadas, quanto para os momentos mais introspectivos. Uma das maiores virtudes da construção de seus álbuns é saber como acelerar e frear o ritmo das músicas, e “Chromakopia” dosa muito bem ambas as frequências sem abrir mão do tato criativo do produtor.

A transição entre “Sticky” e “Take Your Mask Off” é um exemplo ideal de como o artista é capaz de transitar entre diferentes estilos dentro de sua sonoridade. A primeira é uma das maiores surpresas do álbum, e conta com uma produção extremamente enérgica para levantar os ânimos em uma faixa de rap com diferentes camadas sonoras. Em seguida, o clima rapidamente muda com a união de coros, teclados e sintetizadores enquanto Tyler suaviza o tom de suas rimas em uma produção de R&B.

As colaborações também cumprem um papel fundamental para dar ainda mais vida às canções. As melodias de Daniel Caesar e Teezo Touchdown dão um encanto especial às pontes de “St. Chroma” e “Darling, I”, assim como as rimas potentes de Doechii roubam a cena em “Balloon”. Em um destaque à parte, GloRilla, Sexyy Red e Lil Wayne dividem uma química incrível em “Sticky” com versos eletrizantes, em uma parceria que promete se tornar um dos maiores hits do projeto.

O disco mais sincero de Tyler, The Creator

Apesar de muitos atestarem que a sonoridade de Tyler pouco mudou durante os últimos anos, o produtor continua procurando por novas formas de traduzir a sua criatividade em seu som. Tyler the Creator herda em “Chromakopia” alguns elementos de outros discos que podem soar repetitivos para alguns ouvintes, mas a grande novidade está no clima intimista e honesto em que o artista envolve as canções.

Ao contrário de seus antecessores, essa talvez seja a primeira vez em que as letras se sobressaiam às produções em um de seus discos. Durante os últimos anos, Tyler demonstrou ter se aperfeiçoado como compositor, algo pelo qual era criticado no início de sua carreira. Em “Chromakopia”, porém, o artista encontra a melhor versão de sua escrita ao decidir explorar alguns de seus próprios traumas pessoais e revelá-los ao público pela primeira vez.

Hey Jane”, por exemplo, leva o nome de uma clínica real que oferece pílulas abortivas e narra a história de uma gravidez indesejada em um de seus relacionamentos. Em seus versos, Tyler expõe o pânico da situação sob o seu próprio olhar e pela perspectiva de sua parceira, e levanta a reflexão sobre estar pronto para ter ou não filhos no futuro.

Os traumas familiares do passado, a solidão do presente e a incerteza do futuro são temas recorrentes e conectados entre si em “Chromakopia”. Bonita Smith, a mãe do artista, é uma personagem central para a narrativa: ao longo de todo o álbum, são reproduzidos áudios da mãe que ajudam a pincelar os temas das canções e tornam a atmosfera ainda mais pessoal.

Em “Like Him”, a dinâmica atinge o seu nível mais comovente: o cantor desabafa sobre a ausência do próprio pai em sua vida para Bonita, declarando “estar perseguindo um fantasma” ao longo de sua vida. A mãe ressalta as semelhanças do filho com o pai, enfatizando que a sua única referência de figura paterna seja si mesmo. Ao fim da música, a mãe assume a culpa pelo abandono do pai em um diálogo arrebatador entre ambos em um dos recortes mais vulneráveis que o artista já se inseriu.

Bonita também oferece conselhos ao filho sobre a própria vida pessoal, que são utilizados para introduzir algumas canções mais profundas sobre seus medos. Em “Darling, I”, Tyler canta com o coração aberto sobre a dificuldade de se imaginar em um relacionamento amoroso e se contentar em um casamento  — uma imagem que volta a atormentá-lo em “Tomorrow”, na qual reflete sobre o passar do tempo e a pressão de construir uma família junto à sua carreira.

Tyler se tornou conhecido por construir mundos e narrativas que complementam as experiências de seus trabalhos, inventando alter egos e alegorias para retratar o que tem a dizer. “Chromakopia” repete a mesma fórmula, mas pela primeira vez, a impressão mais forte é a de que estamos ouvindo um desabafo direto do artista por trás da obra, e não as de um personagem.

Desta vez, o cinza é a cor predominante na capa, nas referências visuais e nos videoclipes lançados até aqui. Em um mundo incolor, Tyler procura a própria luz dentro de si — ou melhor, de seu alter ego, chamado como Saint Chroma  —  para colorir o ambiente ao seu redor. De certo modo, o exercício guia os rumos do álbum: o cantor descava suas próprias experiências como uma forma de se encontrar em sua vida.

Em uma das listening parties promovidas para o lançamento do disco, o cantor declarou que “esse é o primeiro álbum no qual tudo que disse é verdade”, e as letras comprovam o peso sentimental do projeto. “É tão honesto que acho que tive usar uma máscara do meu próprio rosto pra colocar algumas dessas coisas pra fora”, comentou.

Em “Take Your Mask Off”, Tyler convida os ouvintes a retirarem as suas máscaras ao fazer o mesmo. O artista despe suas inseguranças na tentativa de fazer as pazes consigo: quando Tyler canta sobre como a religião o fez reprimir sua sexualidade, ou como o seu egoísmo o fez ter medo de se tornar pai, o cantor desconstrói os personagens de outras eras de sua carreira para, enfim, apresentar-se como o homem por trás das aparências.

Tyler the Creator trouxe em “Chromakopia” um inspirador exercício de autorreflexão, que nos mostra diferentes maneiras de como a música pode comover e encantar, mas também ser um meio para se transformar. O disco não oferece respostas definitivas sobre as questões nele discutidas, mas propõe um espaço para dialogar sobre elas em um convite à introspecção.

Nota: 9 / 10