“Quem é Caju?”, é a pergunta que Liniker tem feito aos seus fãs desde a semana passada. A ideia para o alter ego que dá nome ao segundo álbum de estúdio solo da cantora surgiu na terapia: em um evento de lançamento do disco, a artista contou que foi questionada pela própria analista se o seu medo de dirigir, na verdade, não seria “um medo de dirigir a própria vida”.
Em “Caju”, Liniker assume o volante e desfruta de sua liberdade criativa para dar voz à própria coragem. Enquanto rompe fronteiras musicais e se aprofunda em seu lado mais artístico, o álbum dialoga sobre amores, poesias e carências com o toque autêntico que somente a artista consegue acrescentar à sua música.
Lançado na segunda-feira (19), o disco nos introduz a um momento inédito de sua carreira. Há muitos anos com destaque na indústria, Liniker passa a apontar para direções inéditas em suas novas músicas, com um conforto ainda maior para transitar entre diferentes estilos e experimentar novos arranjos. O resultado é um dos trabalhos mais densos e comoventes do ano até então, e uma afirmação definitiva de Liniker como uma das maiores artistas de sua geração.
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“Caju” é a versão mais livre de Liniker
O primeiro álbum de estúdio de Liniker, “Índigo Borboleta Anil” (2021), foi lançado como uma introdução marcante de sua carreira solo, que começou com um projeto acima da média – mas bastante seguro. Apesar da novidade em torno do primeiro trabalho sem os Caramelows, o álbum apostou em tons que já havíamos ouvido da cantora no passado, ainda que fossem suficientemente ótimos para destoá-los da maioria dos demais trabalhos nacionais — além, claro, de premiá-la com um Grammy Latino inédito.
Em muitos sentidos, “Caju” pode ser lido como uma sequência direta e mais extrovertida de seu antecessor, mas também um contraponto em tantos outros. Em contraste à figura mais contida de seu disco de estreia, Liniker assume sua roupagem mais corajosa e empoderada em sua nova fase para se reapresentar como Caju, a personagem que representa a força para guiar a própria narrativa.
A faixa-título dá início a “Caju” clamando por um amor que corresponda ao calor de sua paixão, mas que também saiba apreciar a sua grandeza — um pedido que reverbera por todas as composições do álbum. Liniker não teme em escancarar as suas próprias carências ao público, mas faz questão de ressaltar o seu amor próprio na maior parte dos versos.
As demais canções são envoltas por um ar grandioso, que somente é possível graças à produção de Fejuca e Gustavo Ruiz, dupla que também assinou o desenvolvimento do primeiro disco, e à participação de outros nomes como Nave, Iuri Rio Branco e Tropkillaz.
“Veludo Marrom” talvez seja a melhor síntese da essência que “Caju” carrega. A sonoridade ganha uma atmosfera tão doce e fantasiosa quanto o amor de hipérboles sobre o qual Liniker canta; linhas tímidas de guitarra desaguam em violinos estridentes e vocais poderosos, e assim a artista cria uma orquestra tão romântica quanto comovente ao longo de alguns dos sete minutos mais inspirados de sua carreira.
O charme não se perde nas faixas seguintes. “Ao Teu Lado” tem a participação do piano de Amaro Freitas e das melodias da dupla Anavitória para dar vida a uma balada intimista e sensível. Já em “Me Ajude a Salvar os Domingos”, a cantora versa sobre buscar a tranquilidade dos finais de semana ao lado de um amor, em uma sonoridade mais leve e aconchegante. A sequência das três músicas somam aproximadamente 22 minutos que, atualmente, poderiam ser suficientes para serem lançados como um só trabalho de estúdio.
Em tempos em que o consumo de música é cada vez mais dinâmico e tomado por faixas menores e apressadas, é refrescante que Liniker escolha seguir a contramão em um disco de mais de uma hora, com canções longas e gravado de forma analógica. Somente uma das 14 músicas do álbum possui menos de três minutos de duração, e os melhores momentos da obra são justamente aqueles em que os instrumentais se estendem e nos permitem mergulhar nas paixões da artista.
Um disco de muitas camadas e estilos
A principal característica de “Caju”, inclusive, é a sua grandiosidade, tanto nos versos, quanto em seu som. Liniker se veste sob seu alter-ego para expor a sua versão mais afetuosa, ao mesmo tempo que não teme em cantar sobre as próprias vulnerabilidades. Tudo, porém, é traduzido de forma muita intensa, à maneira com a qual a artista se acostumou em compor: expressando o amor em diferentes interpretações, das cotidianas às extraordinárias.
De mesmo modo, o disco expande os horizontes musicais da cantora em diferentes formas e gingados ao abraçar novos gêneros para a sua arte. As canções não só reforçam o estilo pelo qual Liniker se tornou tão aclamada, mas também incorpora traços inéditos, como o pagode contagiante de “Febre”, a disco music dançante de “Deixa Estar” e o afrobeat envolvente de “Tudo”, somente para citar alguns exemplos.
A forma com a qual Liniker conecta a sonoridade às composições também é enriquecedora para a narrativa. Em uma análise mais sentimental (e trabalhos emocionalmente densos como “Caju” pedem por esse ponto de vista), pode-se dizer que a primeira metade do álbum é marcada pelo peso de sentir, enquanto a segunda parece retratar a alegria que pode surgir ao se abrir ao mundo.
Já sob uma ótica mais crua e mercadológica, é possível afirmar que as primeiras canções retratam Liniker no auge de sua liberdade criativa, que reserva o seu potencial comercial para a segunda metade do disco. “Febre” e “Papo de Edredom”, parceria muito bem acertada com Melly, são dois sucessos instantâneos, além de outras canções que se arriscam em um pop mais radiofônico. Porém, a artista não abre mão dos caminhos experimentais para tornar o trabalho mais atrativo para as paradas.
As próprias colaborações são uma forma em que Liniker encontra de conectar a sua arte com novas tendências. As participações não apenas agregam à sonoridade do disco, mas também chamam a atenção de audiências mais distantes. Além de parcerias mais próximas de sua música, como o ritmo tropical do BaianaSystem em “Negona dos Olhos Terríveis”, a artista também flerta com outros gêneros populares, como é o caso do forró de Priscila Senna em “Pote de Ouro” e o toque eletrônico do Tropkillaz em “So Special”. Lulu Santos e Pabllo Vittar também somam à experiência em “Deixa Estar”, um grande e viciante ode à pista de dança.
Volta e meia, entretanto, a mistura de ritmos rende um compasso irregular ao trabalho. Alguns momentos da segunda metade parecem perder o foco quanto mais tentam preencher diferentes estilos, embora a audição não se torne exatamente tediosa em instante algum. A força das composições também oscila em determinadas faixas, como é o caso de “Popstar”, mas não se perdem da mensagem principal.
“Caju” é um balanço inspirador entre o experimental e o comercial, dois mundos que na maioria das vezes se distanciam na indústria. Durante anos de carreira, Liniker conquistou renome suficiente para experimentar como bem entendesse, mas o trabalho também reafirma o potencial que a sua voz tem de atravessar multidões de modo tão singular. É simbólico que “Caju” possa amadurecer como ambos: o seu projeto mais criativo, e possivelmente a porta de entrada para um público ainda maior.
“Take Your Time e Relaxe” encerra o álbum com uma carta em primeira pessoa à Caju, que nos remetem à pergunta que a cantora tanto fez durante os últimos dias. Depois de ouvir o disco por vezes suficientes para refletir, absorver e se emocionar, é possível encontrar algumas respostas: Caju é Liniker em sua versão mais madura, corajosa e livre, às rédeas de seu próprio rumo e autêntica como pouquíssimos conseguem ser.
Nota: 9 / 10