Por cinquenta anos, a separação dos Beatles se manteve como um dos maiores mistérios da música. No fim dos anos 60, os quatro integrantes da banda apontavam para direções distintas, procurando novos significados para as suas vidas enquanto, aos poucos, o grupo se desmanchava até o anúncio de sua separação, em abril de 1970.
Apesar do enorme baque para a época, o término nunca foi completamente esclarecido. Muitas histórias se tornaram folclóricas ao longo dos anos conforme o público procurava os motivos que levaram o quarteto ao fim: a morte do empresário Brian Epstein, a presença de Yoko Ono nas gravações, os crescentes egos de cada músico, entre tantos outros boatos que circulam o mundo há décadas.
“The Beatles: Get Back”, o mais novo documentário dos Beatles recém-lançado no Disney+, é o perfeito registro de uma banda ruindo diante das câmeras, ao mesmo tempo que se esforçam para dividirem o mesmo espaço e lidarem com controvérsias cada vez mais conflitantes entre si. A série tem a direção assinada por Peter Jackson, responsável pelos filmes de “O Senhor dos Anéis”, e reúne mais de 60 horas de gravação, condensadas em três partes diferentes.
Ao longo de sete horas de duração, a série acompanha o quarteto no estúdio durante um mês inteiro, dando vida a algumas de suas canções mais conhecidas. “Get Back” retrata a reta final de sua carreira como um grupo com imagens inéditas, levando-nos para o mais perto possível da banda em alguns de seus últimos encontros.
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O texto detalha alguns dos principais trechos de “The Beatles: Get Back”. Portanto, recomendamos que você assista à série antes de lê-lo para ter a melhor experiência possível!
O começo do fim dos Beatles retratado em “Get Back”
“Get Back” foi gravado em janeiro de 1969 durante as sessões de “Let It Be”, projeto que a banda idealizava como o seu último disco. Para acompanhar o trabalho, a equipe planejava lançá-lo acompanhado de um filme sobre os bastidores do álbum e um show ao vivo, gravado para a televisão como parte de um ato final dos Beatles.
O grupo havia apenas duas semanas para compor e gravar todas as canções, o que os envolveu em uma rotina de muita pressão e correria entre as sessões no estúdio. Ao invés das experimentações e dos invencionismos de seus últimos trabalhos, alguns deles inclusive feitos a distância, a banda preferiu gravar as músicas juntos e ao vivo, de uma maneira que não faziam há anos.
Os Beatles, entretanto, não eram mais os mesmos de antes. Os quatro integrantes haviam atravessado jornadas diferentes ao longo do tempo: já não compartilhavam das mesmas ambições, não se encontravam no mesmo ritmo e apontavam para novos horizontes para suas vidas. Naquela época, os músicos aproveitavam melhor a privacidade de suas vidas pessoais, sem a pressa das turnês ou dos lançamentos, e também para encontrar novas inspirações dentro de sua arte.
No estúdio, os quatro já idealizavam suas músicas de maneira individual, sem a mesma união do começo de suas carreiras — algo que o próprio Paul McCartney admite em certos momentos, quando fala sobre sua relação com John Lennon para compor. Contudo, enquanto ambos dividiam os créditos da maioria das composições do quarteto, George Harrison se mostrava cada vez mais insatisfeito com seu papel criativo na banda. Suas ideias eram, em grande parte, escanteadas pela dupla, ainda que o guitarrista apresentasse aos demais canções que viriam a se tornar alguns de seus grandes clássicos, como “Something”, lançada pelos Beatles meses depois, e “All Things Must Pass”, seu maior sucesso solo.
Durante a primeira parte de “Get Back”, o descontentamento de Harrison durante os ensaios cresce diante das câmeras, até que já não consegue mais suportar o clima e, repentinamente, anuncia que está deixando a banda. “Vejo vocês pelos clubes”, diz para John, Paul e Ringo enquanto deixa o estúdio em Twickenham.
A saída de George impacta imediatamente o clima das gravações, conforme os integrantes e os produtores não sabem como prosseguir com o projeto. Os demais Beatles tentam se reunir com o guitarrista para conversar sobre, longe das câmeras, mas sem sucesso. Depois de alguns dias, Harrison finalmente retorna ao estúdio, mas a tensão já deixava claro: os Beatles não continuariam juntos por muito tempo.
Paul McCartney também sabia disso, e Peter Jackson faz questão de destacá-lo no início da segunda parte da série. Na semana seguinte, Ringo e Paul aparecem no estúdio em meio às incertezas que rodeavam o futuro do grupo, e decidem conversar sobre a situação com a equipe. O cantor, questionado a respeito do envolvimento de John Lennon com a banda, sabe que, se o confrontasse, restariam apenas ele e Ringo. Com os olhos marejados, Paul encara o vazio por alguns longos segundos, dando-se conta de qual seria o destino dos Beatles.
A equipe de filmagem da época sabia do drama que o momento carregava, e também procurou registrá-lo de sua própria forma. No mesmo dia, John e Paul saem para almoçar juntos, e uma parte da conversa é gravada sem que ambos soubessem, proporcionando aos espectadores uma nova perspectiva sobre como a dupla enxergava o futuro dos Beatles.
As duas demais partes de “Get Back” também complementam o olhar sobre o clima instável com o qual a banda convivia, entre momentos de êxtase e de controvérsia. O quarteto se muda para o recém-inaugurado estúdio da Apple, sua própria empresa, onde gravam boa parte do trabalho com Billy Preston, tecladista que haviam conhecido no começo de suas carreiras.
Já o terço final da série retrata a famosa apresentação do grupo no terraço de seu estúdio, a solução que encontraram para filmarem o especial ao vivo que haviam acordado com a sua equipe. O show, realizado no dia 30 de janeiro de 1969 em Londres, marcou a última vez que os Beatles tocaram juntos ao vivo.
A banda de uma maneira nunca vista antes
Além de registrar o conflito de egos entre os Beatles, uma das grandes novidades de “Get Back” é nos mostrar o processo criativo da banda de uma maneira nunca vista antes. A série mergulha nas sessões por vários e vários minutos, acompanhando a banda durante a gravação de alguns de seus grandes clássicos, como “Let It Be”, “Don’t Let Me Down” e a própria “Get Back”, além de tantas faixas do disco que surgem ante aos nossos olhos no decorrer dos episódios.
Já em janeiro de 1969, o grupo também pensava em canções que somente gravariam meses depois, seja em conjunto ou em suas carreiras solo. Várias músicas do “Abbey Road”, por exemplo, ganham forma durante as sessões de “Let It Be”, embora tenham sido deixadas de lado da versão final do álbum; entretanto, é muito interessante assistir como a história se escreve a partir de ideias cotidianas dos quatro integrantes, ainda que estivessem longe de seu melhor momento juntos.
Por vezes, há passagens que se arrastam por boa parte da série, deixando a experiência tediosa em determinados momentos. “Get Back”, porém, sempre peca pelo excesso de conteúdo, e até mesmo nos trechos mais maçantes, impressiona ao espectador pelas imagens de John, Paul, George e Ringo, apresentando-nos a cenas frequentes para o quarteto, mas inéditas para o público.
“The Beatles: Get Back” é um prato cheio para todo e qualquer fã da banda. A série de Peter Jackson desenha um retrato nunca antes visto de quatro dos maiores protagonistas da história da música, permitindo-nos conhecê-los da maneira mais humana e íntima possível, mesmo depois dos 50 anos que os marcaram na eternidade, além dos tantos clássicos e das tantas histórias.