Compton é culturalmente reverenciada como um dos grandes berços do hip-hop da maneira que o conhecemos atualmente. De sua tímida população de aproximadamente 98 mil habitantes, levantaram-se nomes que viriam a ascender o gênero pelos Estados Unidos, desde os talentos individuais de Dr. Dre e seus trabalhos ao lado do lendário N.W.A. nos anos 90 até a potência musical trazida por The Game na década passada.
Conforme o rap se tornava cada vez mais acessível e atravessava as fronteiras de todo o mundo, o nome de Compton gradualmente desaparecia no mapa e perdia a sua força em um meio já fortalecido em escala global. Foi quando, entre a guerra de gangues e os elevados índices de criminalidade que assolavam a pequena cidade californiana, surgiu uma voz que viria não apenas a reconsagrar a costa oeste americana, mas também a marcar a história de um gênero que parecia desgastado.
Ao chegar em seus 30 anos de idade neste sábado (17), Kendrick Lamar Duckworth enfileira seus clássicos e se estabelece como o rapper mais importante de sua geração, alcançando aclamação tanto crítica quanto comercial de uma forma que nenhum de seus contemporâneos conseguiu e espalhando sua visão artística por toda a indústria fonográfica.
2004-2010: INÍCIO DA CARREIRA E PRIMEIRAS MIXTAPES
A carreira de Kendrick teve início aos 15 anos com a mixtape “Youngest Head Nigga in Charge (Hub City Threat: Minor of the Year)”, lançada sob o selo da Konkrete Jungle Muzik em 2004, assumindo o pseudônimo de K-Dot. Camuflando-se na faceta gangster que dominou o rap nos anos 2000, o californiano conquistou prestígio local e assim chamou a atenção da gravadora independente Top Dawg Entertainment, que o ofereceu um contrato que garantiria ainda mais visibilidade por sua terra natal.
Coincidentemente, o fundador da gravadora, Anthony “Top Dawg” Tiffith, quase assassinou o pai de Lamar durante um assalto à uma unidade do KFC em sua adolescência criminosa — história esta que é retratada pelo rapper em “DUCKWORTH.”, onde ele atribui o sucesso da TDE ao bom carma de seu chefe, que poderia ter sido preso em circunstâncias contrárias e consequentemente impedido a criação de seu próprio selo e o nascimento de seu principal artista.
Não levou muito tempo para que os trabalhos de Kendrick pela Top Dawg Entertainment viessem a ser reconhecidos e assim fosse introduzido à colaborações com outros rappers de renome local na costa oeste dos Estados Unidos e posteriormente à Lil Wayne, que coassinou uma de suas mixtapes em 2009 meses antes da formação do Black Hippy, supergrupo composto junto aos companheiros de gravadora: Jay Rock, Ab-Soul e ScHoolboy Q. Degrau por degrau, consolidava-se como uma das pérolas da chamada “nova geração do hip-hop” e despertava a atenção dos grandes nomes do gênero.
2011: “SECTION.80”
Após lançar sua mixtape mais bem-sucedida até então, “Overly Dedicated”, Lamar seguiu adiante com a produção de seu primeiro álbum de estúdio, “Section.80”, de maneira independente com a Top Dawg. O projeto saiu do papel em julho de 2011 e permitiu ao rapper trabalhar ao lado de J. Cole, RZA e Terrace Martin, além de conquistar o reconhecimento de Snoop Dogg, Dr. Dre e The Game, três das principais influências do americano que mudariam a trajetória de sua carreira.
Isso pois, em agosto daquele ano, Kendrick foi coroado pelos três grandes representantes do hip-hop californiano como “o novo rei da costa oeste americana” durante uma das apresentações mais importantes da história do rap, abrindo o caminho para conquistar uma maior massa de público pelos Estados Unidos com o seu primeiro single de razoável sucesso, “A.D.H.D”, e com parcerias com o próprio The Game e Drake, cuja turnê na época contou com Lamar como ato de abertura.
2012-2014: “GOOD KID, M.A.A.D CITY”
Junto à sua ascensão individual, o rapper também impulsionou a Top Dawg Entertainment consigo. O selo da gravadora logo apareceu acompanhado de duas companhias de enorme relevância no meio musical, a Interscope Records e a Aftermath Entertainment, e a tripla parceria deu origem ao primeiro lançamento mainstream de Kendrick, “good kid, m.A.A.d city”.
Engenhosamente, o rapper se afastou dos clichês líricos e decidiu narrar a sua própria trajetória em Compton, alternando entre temas como a violência, criminalidade e depressões dos quais tentava escapar em meio ao seu crescimento tanto pessoal quanto artístico em um corte quase que cinematográfico.
Apesar de apostar em uma proposta conflituosa com a musicalidade popular, a produção do álbum aproximou os interesses comerciais e narrativos de Kendrick, e reforçando-os com colaborações com Dr. Dre, Drake e Jay Rock e dando origem à singles de sucesso como “Swimming Pools (Drank)”, “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, “Poetic Justice” e “Backseat Freestyle” e hits involuntários como “m.A.A.d city” e “Money Trees”.
“good kid, m.A.A.d city” foi lançado no dia 22 de outubro de 2012 e é considerado por muitos como o verdadeiro trabalho de estreia de Kendrick Lamar, uma vez que o introduziu ao público de grande massa. O disco obteve 242 mil cópias vendidas em sua primeira semana nos Estados Unidos e até 2015, havia reunido cerca de 1,4 milhões de unidades comercializadas
O enaltecimento à “good kid, m.A.A.d city” foi instantâneo. O projeto rapidamente encantou a crítica e passou a ser eleito como um dos grandes trabalhos de rap do século XXI — e não à toa foi indicado à sete categorias no Grammy Awards, incluindo “Álbum do Ano” e “Melhor Álbum de Rap” (ambas conquistadas por Macklemore & Ryan Lewis em um dos episódios mais controversos da premiação).
Em um intervalo de poucos anos, Kendrick conseguiu desenlaçar-se de suas raízes e provar a sua excelência musical ao mundo, elevando sua reputação para patamares gigantescos e sendo apresentado à concorrência da grande gama de rappers do cenário mainstream. Com os olhares da indústria fonográfica voltadas ao seu próximo material, a divergência entre a manutenção artística de seu trabalho e a comercialização sonora era retomada novamente.
O rap, sendo um dos gêneros musicais de maior apelo comercial atualmente, necessita constantemente de reinvenções e novas propostas, ainda que seu alicerce estilístico mantenha-se intacto ao longo dos anos. Na metade dessa década, sua aproximação com o pop tem se tendenciado gradativamente e permitiu a popularização internacional de nomes como Drake e o próprio K-Dot, em parcerias com Taylor Swift, Beyoncé, Sia e Maroon 5. Contudo, o californiano decidiu seguir na contramão em seu próximo clássico solo.
2015-2016: “TO PIMP A BUTTERFLY”
“To Pimp A Butterfly”, lançado em março de 2015, deixou de lado os elementos populares e modernizados do atual hip-hop e resgatou a essência musical negra norte-americana, incorporando características do jazz, do funk e do soul como fundo à uma narrativa ainda maior e mais ambiciosa que a de seu antecessor. Com sua grande obra-prima, não restavam mais dúvidas do quão grandioso era o talento de Kendrick Lamar e de sua habilidade em criar clássicos.
Aprofundando a discussão sobre seu próprio crescimento em Compton e expondo seus demônios pessoais, Lamar preparou uma obra monumental para o seu retorno com uma riqueza poética e conceitual desconhecida até então. Os debates sociopolíticos trazidos por suas rimas hipnotizantes e a manifestação de suas ambições internas foram perfeitamente retratados pela sonoridade opulenta do trabalho, que não precisou de muitas semanas para ser considerado uma das grandes obras-primas do rap — e justamente.
Com “To Pimp A Butterfly”, Kendrick garantiu 11 indicações ao Grammy Awards — o segundo maior número de nomeações em uma só edição da história da premiação, atrás apenas de Michael Jackson com 12 — , das quais saiu vitorioso em cinco
“To Pimp A Butterfly” desempenhou uma imensa importância não apenas no hip-hop, mas também no jazz. O disco, por exemplo, alavancou a carreira do saxofonista Kamasi Washington, o maior representante de seu gênero no novo milênio, e ajudou a manter viva a identidade do estilo em um mainstream soterrado pela artificialização musical.
Tamanha foi a influência cultural do álbum que o levou a ser arquivado nas bibliotecas da universidade americana de Harvard junto à trabalhos de Nas, Lauryn Hill e A Tribe Called Quest — todos nomes que levaram carreiras inteiras para terem sua magnificência reconhecida no meio, enquanto Kendrick precisou de menos de três anos e três discos.
Do fogo cruzado da guerra de gangues de Compton, K-Dot agora carregava as dores de uma etnia inteira enquanto trazia de volta à tona o conflito racial à tempo de acompanhar movimentos como o “Black Lives Matter”. Logo, muitas de suas composições passaram a representar a batalha por igualdade e servir de trilha sonora para uma guerrilha histórica muito bem retratada em “Alright” e “The Blacker The Berry”, por exemplo.
Ambas as canções integraram o repertório do rapper em sua impecável performance no Grammy Awards em 2016, onde o palco do Staples Center tornou-se pequeno demais para o peso das críticas ali apresentadas. Ainda assim, a perfeição de “To Pimp A Butterfly” não foi suficiente para superar “1989”, de Taylor Swift, como “Álbum do Ano”, dando continuidade às polêmicas racistas da premiação — que um ano mais tarde ressurgiriam com a vitória de Adele sobre Beyoncé.
Enquanto boa parte dos rappers viriam a tratar sua fama e a comercializar ainda mais seu trabalhos, Lamar continuava incessavelmente a remexer nas cicatrizes da sociedade afro-americana e a tomar a frente da questão racial na indústria fonográfica. Entretanto, após dois projetos universalmente aclamados (e uma coletânea genial de sobras das sessões de gravação de “To Pimp A Butterfly”, a chamada “Untitled Unmastered”), agora buscava apontar os olhares para os seus próprios atritos e sua expansão ao longo do curso meteórico que sua carreira tomou em um espaço tão curto de tempo.
2017: “DAMN.”
“DAMN.” é tão impactante quanto o tom de seu título. Previamente descrito como “um trabalho urgente” pelo próprio Kendrick, o álbum retrata as implosões sofridas no decorrer de sua trajetória no meio musical, passeando por diferentes temáticas em um conjunto de faixas que, mesmo não tão bem combinadas quanto em seus predecessores, mantém as características de praxe da discografia do americano.
Para ilustrar o fardo de tópicos como religião, amores, luxúrias e medos (escancarados nos nomes das próprias músicas, como se nota em “LOVE.”, “LUST.” e “FEAR.“), o rapper optou por uma abordagem mais direta, substituindo o classicismo da produção de Thundercat, Flying Lotus e LoveDragon visto em “To Pimp A Butterfly” pelo trabalho moderno de nomes como Mike WiLL Made-It e Greg Kurstin. E o que poderia ser interpretado como um artista em seu auge sucumbindo às tentações comerciais da atual indústria foi prontamente desiludido com uma sonoridade estonteante.
Pouco mais de dois meses após o seu lançamento, “DAMN.” já é o trabalho mais bem-sucedido de Lamar. O disco reuniu o equivalente a 1,1 milhão de unidades vendidas apenas nos Estados Unidos desde o seu lançamento, superando os percentuais iniciais de “To Pimp A Butterfly” e “good kid, m.A.A.d city”
Sem resquícios de dúvidas, “DAMN.” é a obra mais comercial e inteligível de Kendrick até então, o que não necessariamente a posiciona abaixo de seus predecessores em termos de qualidade artística. O título é o autorretrato das desavenças e das ânsias de um já consolidado rapper que, pela primeira vez em sua carreira de quinze anos, distancia-se dos contos de sua cidade natal e das angústias do povo afrodescendente para aproximar-se de si mesmo.
O poderio de “HUMBLE.” e “DNA.” e das colaborações com U2, Rihanna e Zacari são apenas alguns dos abalos que Kung Fu Kenny (como é proclamado em seu último disco) vem provocando desde a sua chegada à uma indústria fonográfica até então carente de uma perspectiva tão ampla e crucial quanto a presente em seus debates líricos. O reconhecimento que muitos artistas conquistaram apenas em sua morte, o californiano vivencia com três décadas de idade e quatro trabalhos de estúdio — o que, por si só, já é um feito grandioso.
Oriundo do calvário da história inteira de uma raça e dos perigos e inseguranças de Compton, Kendrick Lamar tomou as rédeas de um gênero ameaçado e rapidamente consagrou-se não apenas como o maior rapper de sua geração, mas também como um dos maiores nomes da história do hip-hop. E se bastaram 30 anos para a glorificação de sua genialidade, devemos continuar atentos em como a história será feita na indústria fonográfica, assim como ela vem sendo desde 17 de junho de 1987.