in , ,

Run The Jewels ressoa o canto das ruas em seu novo e melhor disco, “RTJ4”

O Run The Jewels, formado por Killer Mike (à esquerda) e El-P (à direita)

Em dezembro de 2016, os Estados Unidos da América sofriam uma onda de protestos decorrentes do resultado das eleições presidenciais. Apesar de não contar com a maior parte dos votos populares, o republicano Donald Trump obteve a maioria do colégio eleitoral, resultado suficiente para nomeá-lo o 45º presidente norte-americano — pelos democratas, uma catástrofe anunciada para os próximos quatro anos. Um mês antes de sua posse, o povo foi às ruas protestar contra sua política nacionalista e sua postura agressiva e racista com negros e imigrantes, entre tantas reivindicações — dentre as quais se mesclaram vários outros movimentos, sobretudo o então recente Black Lives Matter. Da mesma época que surgiam figuras como Colin Kaepernick e morriam outras como Alton Sterling e Philando Castile, o Run The Jewels lançava seu terceiro manifesto de estúdio, gratuitamente.

Quatro anos depois, enquanto o mundo assiste uma pandemia se alastrar e a convulsão social tomar forma, muitos pontos que eram contestados passaram a ser entendidos. A direita global bebe de fontes fascistas e autoritaristas há muito tempo denunciadas. Trump recorre ao caos pela lei marcial. A brutalidade da violência policial foi escancarada. Vidas pretas voltaram a ser importantes. Kaepernick foi compreendido; George Floyd e Breonna Taylor, assassinados. E, novamente, o Run The Jewels retorna com seu quarto manifesto de estúdio, gratuito e, mais do que nunca, necessário.

“RTJ4” tinha o lançamento agendado para a última sexta-feira (5), mas o duo optou por adiantá-lo em dois dias. “Que se foda, por que esperar?”, questionaram Killer Mike e El-P em suas redes sociais. De fato, não havia porquê: o trabalho chega em um momento perfeitamente ideal, com letras e ritmos tão certeiros quanto a sociedade atual pede. Apesar de ter sido gravado há meses, o álbum ressoa os mesmos protestos das manifestações de hoje, provando que os anos passam, mas os tempos seguem os mesmos.

As rimas de cada música dialogam precisamente com a atualidade como se fossem escritas, gravadas e produzidas na semana passada. Entretanto, tais semelhanças passam longe de serem meras coincidências: o disco é a culminação do ativismo político e social que a dupla tem protagonizado ao longo dos últimos anos, cujos protestos, imersos no contexto em que vivemos, soam ainda mais impactantes.

“Yankee And The Brave (ep. 4)” e “Ooh LA LA”, os dois primeiros singles do trabalho, já prenunciavam esse mesmo caminho: versos desconcertantes que miram em diferentes questões sociais de uma só vez, seja em oposição ao sistema capitalista ou à violência policial, ambas temáticas recorrentes na discografia do Run The Jewels de maneira atemporal. “RTJ4”, porém, reproduz uma urgência maior que as demais obras do duo, dispensando as utopias anárquicas para aproximar seu canto da realidade. 

Os dois, porém, mal poderiam imaginar que a realidade que se aproximaria de seu canto. Em “Walking In The Snow”, talvez o grande destaque do álbum, Killer Mike discorre sobre as injustiças raciais que permeiam a sociedade, até “sua voz ir de um grito a um sussurro de ‘não consigo respirar’” pelas mãos de um policial. Cirurgicamente profético ou infelizmente óbvio?

“And every day on evening news they feed you fear for free
And you so numb you watch the cops choke out a man like me
And ’til my voice goes from a shriek to whisper, ‘I can’t breathe’
And you sit there in the house on couch and watch it on TV
The most you give’s a Twitter rant and call it a tragedy”

— Killer Mike em “Walking In The Snow”

A música, segundo o próprio rapper, foi gravada em novembro de 2019, mas traduz com exatidão os noticiários de hoje e resume o destino de muitos que enfrentam as opressões cotidianas que a cor da pele os impôs. De Eric Garner em 2014, George Floyd em 2020 e tantos outros que não chegaram às manchetes ou ao Twitter. “Heróis mortos pelo Estado assim como Jesus”, lembra Mike aos “pseudo-cristãos” a quem El-P se direciona alguns segundos antes.

Há diversas outras mensagens de mesmo efeito pela tracklist. Em “Holy Calamafuck”, El-P se volta a quem “odeia o Run The Jewels e ama os soldados”; “JU$T” medita sobre o poder e a subserviência ao dinheiro; “Never Look Back” explora o passado da dupla em suas próprias palavras; em “Pulling The Pin”, entram em debate as tentações da sociedade capitalista e os meios de mudá-la — “uma missão mais do que política, mas espiritual”. Se você ouvir um só dos 39 minutos de “RTJ4” desatento, é muito provável que você perca alguma importante reflexão.

Para trazê-las à tona, a química entre ambos os rappers está em sua melhor forma desde a criação do Run The Jewels, assim como a produção, assinada pelo próprio El-P ao lado de nomes como Little Shalimar, Wilder Zoby e até mesmo Josh Homme, líder da banda Queens Of The Stone Age. Todas as canções são interligadas umas às outras por meio de transições quase imperceptíveis e alternadas entre as rimas de cada um, cujo encontro entre a agitação de El-P e a agressividade de Mike soa tão natural que parecem ter sido feitas uma para a outra.

As colaborações do álbum também foram escolhidas a dedo. Enquanto Pharrell Williams e 2 Chainz fazem a ponte com a música atual, nomes mais experientes como Mavis Staples e Zack De La Rocha, vocalista do Rage Against The Machine, reforçam o perfil revolucionário do trabalho com duas das vozes mais importantes para o ativismo na indústria fonográfica. A participação de Greg Nice e DJ Premier em “Ooh LA LA” também escancara as influências do duo em grupos mais antigos do rap, como o N.W.A., o Wu-Tang Clan e o próprio Nice & Smooth. O hardcore hip-hop agradece.

Ao mesmo tempo que se revela como uma versão aperfeiçoada de seus três antecessores, “RTJ4” carrega uma essência diferente dos demais. Ainda que a energia e o alarde de sempre estejam mais uma vez ali, o disco é ditado por um tom mais consciente, que se faz presente na escolha meticulosa de cada palavra para dar luz às suas ideias. Aqui, a anarquia dominante cede espaço para a fúria contida, que esbraveja em momentos específicos sem perder seu impacto ou a consciência na voz — vide faixas explosivas como “Holy Calamafuck”, “Goonies vs. E.T.” e “The Ground Below”.

Em uma democracia ameaçada (estejamos nós falando de lá ou cá), essa mudança não é repentina, mas parte do próprio posicionamento de ambos como ativistas. Na semana passada, Killer Mike fez um emotivo discurso junto à prefeitura de sua cidade natal, Atlanta, a respeito das manifestações que têm tomado os Estados Unidos nos últimos 14 dias. Ao invés de priorizar o choque da violência, o rapper clamou pelo poder da organização de uma verdadeira revolução. 

“Precisamos ser melhores do que queimar nossas próprias casas porque se perdemos Atlanta, o que temos?”, questionou. “O dever de vocês não é queimar suas próprias casas pela raiva contra um inimigo. O dever de vocês é fortificarem suas próprias casas, para que sejam um refúgio em tempos de organização. E agora é a hora de planejarmos, estrategizarmos, organizarmos e nos mobilizarmos”.

Dizendo-se indignado e cansado com a situação, Mike prossegue: “É por isso que os mais jovens estão queimando tudo: eles não sabem mais o que fazer. E é nossa responsabilidade fazermos melhor, agora. Não queremos ver um policial multado, queremos ver quatro deles processados e sentenciados. Não queremos ver alvos queimando, queremos ver o sistema que mantém o racismo sistêmico queimar”. Pediu também à mídia, mais especificamente à CNN norte-americana, cuja sede em Atlanta foi pichada por protestantes durante um dos primeiros atos, para que “parem de alimentar o medo e a raiva todos os dias” através de coberturas parciais e sensacionalistas.

Apesar de grande parte das composições do Run The Jewels seguirem a contramão do discurso, Killer Mike fala não só em nome de suas próprias experiências como filho e primo de policiais, mas também representa uma oposição política que carece de organização e unidade em frente à repressão. “RTJ4” incorpora o mesmo discurso: trata-se de um disco sobre a ressignificação da luta sem abrir mão da revolta ou do inconformismo que movimentam e sensibilizam legiões, propondo novos meios de eternizar a memória dos acometidos pela injustiça social.

No ápice de suas carreiras, ambos aos 45 anos de idade, Killer Mike e El-P estão mais lúcidos, precisos e sinceros do que nunca. Com trajetórias inconstantes em vários altos e baixos, o duo definitivamente se encontra em seu melhor e mais consolidado momento, no qual as palavras jamais soaram tão poderosas e as mensagens são mais cirúrgicas do que gostaríamos que fossem. Contudo, em tempos tão indescritíveis como os nossos, Michael Render e Jamie Meline conseguem fazer o trabalho como quase ninguém.

Em “A Few Words For The Firing Squad (Radiation)”, última música do álbum, El-P anuncia a rebelião enquanto Mike dedica suas palavras “aos bons e aos maus usados e abusados; aos que disseram a verdade e foram amarrados nos postes, espancados, agredidos e machucados; àqueles cujos corpos foram amarrados nas árvores como frutas estranhas”. “RTJ4” é uma obra feita para levar a memória de todos que foram calados no canto, seja ele berrado nas ruas ou sussurrado no fone de ouvido. Para a memória de George Floyd, Eric Garner e Breonna Taylor; de João Pedro, Ágatha Félix, Miguel e todas as vítimas esquecidas do sistema.

Há quase uma década, o Run The Jewels tem sido um dos nomes mais engajados e importantes para o cenário musical. Com seu quarto disco juntos, a dupla assume o protagonismo e amplifica os protestos para todos escutarem o que têm a dizer. “RTJ4” é um manifesto ideal para os dias atuais, poderoso o suficiente para inquietar as indignações mais reprimidas e inspirar multidões cada vez maiores, unidas na mesma voz.

9/10

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *