Caso você seja minimamente interessado em cultura pop, certamente você conhece o nome de Donald Glover. O ator, roteirista, produtor, humorista e músico marca presença em muitos projetos que repercutiram no entretenimento nos últimos anos, e sempre demonstrou um talento especial em todos os ramos que decidiu atuar. Foi sob a alcunha de Childish Gambino, porém, que o artista pôde melhor desfrutar de sua liberdade criativa.
Ao mesmo tempo que estrelava a comédia de sucesso “Community”, Glover decidiu se arriscar na música em um projeto solo, pelo qual transformou sua inspiração no hip-hop e no soul em discos de grande aclamação, como “Because The Internet” (2013) e “Awaken, My Love!” (2016). A inventividade e a versatilidade do Childish Gambino se tornaram uma marca registrada de Donald, e mesmo quando decidiu focar em sua carreira no cinema, suas canções continuaram presentes no imaginário popular.
O lançamento de seu sexto álbum de estúdio, “Bando Stone And The New World”, dá fim à uma longa espera por novidades por parte dos fãs, mas também marca a sua despedida do alter ego que o introduziu ao mundo da música. Para o seu último ato, o cantor reuniu as várias fases pela qual o Childish Gambino atravessou em um único e ambicioso trabalho: um disco acompanhado de um longa-metragem e uma turnê mundial.
Enquanto o filme e os shows devem ficar para um segundo momento, o álbum ressalta a grandiosidade que Glover alcançou nas diferentes frentes de sua carreira. O Childish Gambino se despede do estúdio com um projeto que reúne os seus talentos e influências e destaca a sua inquietação artística.
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Um projeto diferente
A divulgação de “Bando Stone And The New World” nas últimas semanas deixou claro ao público que este seria um projeto diferente dos demais. O disco foi anunciado com o trailer de um filme homônimo, exibido no BET Awards e em sessões de cinema pelos Estados Unidos, e deve ser acompanhado de uma produção cinematográfica em algum momento. O álbum, inclusive, é referenciado como uma “trilha sonora” pelo próprio Donald — e sua estética deixa esse propósito bastante evidente.
O trabalho foi montado e organizado como a história de um filme, com a inclusão de diálogos e efeitos sonoros retirados da produção para mergulhar o ouvinte na experiência. “Vamos morrer?”, pergunta o seu filho Legend nos primeiros segundos da obra, que é prontamente respondido pelo pai: “Não essa noite”. A interação é somente a primeira de muitas na narrativa, e é sucedida por uma hora inteira de invencionismos, experimentações e homenagens.
São muitos os motivos que fazem de “Bando Stone And The New World” o álbum mais ambicioso de Childish Gambino. A proposta de gravá-lo como a trilha sonora de um filme, que por si só já seria uma ideia ousada, impacta diretamente em sua sonoridade e nas influências impressas por Donald. O disco é uma viagem maximalista, com canções tão grandiosas quanto a sua proposta.
“H3@RT$ W3RE M3NT TO F7¥” dá início ao trabalho com uma produção estridente e experimental que rapidamente nos remete aos tempos de “Yeezus” (2013), de Kanye West, uma inspiração clara para o repertório do Childish Gambino. Em seguida, “Lithonia” aumenta o volume do disco com a ajuda de um forte refrão e os riffs de guitarra de um rock de arena.
Assim o ritmo da obra se sucede, de maneira com que a próxima música sempre guarde uma surpresa diferente da anterior. O que poderia ser uma bagunça de estilos, batidas e flows, porém, transforma-se em uma experiência imersiva; Donald Glover não perde o fio condutor durante a audição e envolve o ouvinte como parte de seu universo — com a importante contribuição, vale lembrar, de produtores como Ludwig Goranson, Max Martin e Steve Lacy.
“Bando Stone And The New World” também é um álbum bem cadenceado, e tal como o roteiro de um bom filme, sabe acelerar e frear o ritmo quando necessário. Faixas como a melódica “Steps Beach” e o dueto com seu filho, “Can You Feel Me”, dão um fôlego essencial para o andamento do disco, ao mesmo tempo que a frenesi de músicas como “Got To Be” não permite à poeira abaixar por muito tempo. Algumas canções, entretanto, parecem que farão mais sentido com a obra completa — isto é, quando podermos escutá-la junto ao filme homônimo que foi prometido. É o caso das extrovertidas “Real Love” e “Running Around”, um pop rock que realmente parece ter sido extraído da trilha sonora de um blockbuster.
Uma viagem pelas influências
À parte da proposta inédita que Glover encontrou para o seu último disco, muitas de suas músicas capturam a essência que tornou o Childish Gambino um projeto tão único. A variedade de influências e sons que marcou a carreira musical do artista se faz presente ao longo do trabalho e nos leva a outras fases de sua jornada, como um lembrete nostálgico aos fãs de longa data e uma reapresentação aos ouvintes das gerações mais novas.
“Yoshinoya” representa um dos momentos mais emblemáticos da obra, no qual Donald caneta um verso potente em um breve retorno ao rap de “Because The Internet”. A voracidade das batidas se complementa às letras com um ataque subentendido a figuras como Drake e Elliott Wilson — o que até poderia ser uma grande novidade, se não fossem os duelos que têm tomado o hip-hop em 2024. Alguns minutos depois, “No Excuses” também carimba um dos destaques artísticos do álbum; fortemente inspirada pelo jazz e pelo soul, a música se prolonga por mais de sete minutos em um misto de instrumentos que reforça a atmosfera proposta.
A lista de participações especiais do disco também contribui com a vasta gama de inspirações que abrange. Em “In The Night”, Donald convida o talento de Jorja Smith e de Amaarae para dar voz ao afrobeat dançante da faixa. O rapper Yeat também empresta as suas rimas e o seu flow em “Cruisin’”, uma colaboração cativante e muito bem produzida.
Com a tarefa de sustentar uma hora de duração, inevitavelmente o disco cai em alguns momentos de tédio. O trap genérico e as letras pouco inspiradas de “Talk My Shit”, por exemplo, marcam um dos pontos baixos do álbum, e nem a contribuição de Amaarae e Flo Milli animam o suficiente. Já canções como “Survive”, parceria com Chlöe, e “We Are God” soam pretensiosas demais até mesmo para o intuito do trabalho e mal agregam à experiência final.
Uma despedida digna do Childish Gambino
Aos seus 40 anos de idade e consolidado como um dos nomes mais vindouros de sua geração, Donald Glover parece ter compreendido o curioso papel que conquistou para si no meio musical. Afinal, o Childish Gambino sempre ocupou um espaço singular entre outros artistas contemporâneos, com ousadia suficiente para mergulhar em diferentes gêneros e autenticidade o bastante para remoldá-los à sua própria maneira.
Ainda não se sabe se Donald continuará a escrever, gravar e lançar canções sob o seu próprio nome, ou se o fim do Childish Gambino também marca a sua aposentadoria definitiva da música. Mas caso esse de fato tenha sido o seu último trabalho, é certo dizer que o disco é um reflexo da criatividade e da inquietude que guiaram toda a sua trajetória.
“Bando Stone And The New World” é um capítulo final digno para uma história especial. O projeto sintetiza as várias influências que guiaram o Childish Gambino e dão vida a um último respiro de criatividade para a música de Donald Glover. Mais inspirador do que o resultado final, é a liberdade de um artista em trilhar o seu próprio caminho.
Nota: 8,5 / 10