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Análise: Como o rap chegou ao palco do Super Bowl

Dr. Dre, Snoop Dogg, Mary J. Blige, Eminem e Kendrick Lamar se apresentam em um dos maiores espaços que o rap já alcançou; 50 Cent e Anderson Paak também pisaram no palco

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Por muitos anos, o Super Bowl tem recebido um dos grandes marcos da música: o show do intervalo, um verdadeiro espetáculo diante de uma audiência de milhares de pessoas por todo o mundo. A apresentação de apenas 15 minutos simboliza o encontro entre talento e organização, com efeitos especiais únicos e um destaque global que transcende o futebol americano.

Ao longo do tempo, a NFL passou a investir no show como uma forma de atrair novos públicos para a liga, de maneira que o perfil dos artistas também mudou drasticamente com o passar dos anos. Em 2022, é a vez do hip-hop assumir o palco da final em um de seus principais berços: a Califórnia, terra em que os principais versos do rap ganharam forma e se espalharam pelo mundo.

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Dr. Dre, Snoop Dogg, Eminem, Mary J. Blige e Kendrick Lamar se reúnem naquele que promete ser um dos maiores shows do intervalo da história do Super Bowl — um marco não só para a música, mas principalmente para o rap, que depois de tantos anos à margem da grande mídia, terá um dos maiores palcos e públicos do mundo para celebrar a sua história. A final será transmitida neste domingo (13), a partir das 20h30, na Rede TV e na ESPN.

Atualização em 14 de fevereiro de 2022, às 17h23: A apresentação também contou com um show surpresa de 50 Cent e com a aparição de Anderson Paak na bateria da performance de Eminem.

Os shows do Super Bowl ao longo da história

Tratando-se de um esporte muito regional, o futebol americano não carrega o mesmo apelo universal que outras modalidades, mas ainda é capaz de atrair multidões pelo mundo por meio do seu investimento multimilionário. Com o passar dos anos, o Super Bowl, a grande final da liga, tornou-se um verdadeiro evento cultural, ajudando a NFL a atingir novos patamares ao redor do globo.

Hoje, o Super Bowl é assistido por um público médio de 100 milhões de espectadores pelo mundo por atrações que transcendem o jogo. Além de seu espaço publicitário bilionário, o mais valioso de todo o calendário, a NFL também passou a investir no show do intervalo nas últimas décadas, como uma maneira de engajar o público mais jovem e fortalecer o interesse no futebol americano.

Até os anos 90, as apresentações eram feitas por bandas universitárias de marcha, sem qualquer apelo para o público fora do estádio. Tudo mudou em 1993, também na Califórnia, quando Michael Jackson se tornou o primeiro artista a se apresentar no Super Bowl da maneira que conhecemos hoje: uma performance impecável, que protagonizou as manchetes de todo o mundo.

Depois de Michael, a NFL enxergou no intervalo uma possibilidade de realizar um espetáculo à parte, o que revolucionou os shows a partir dos anos 2000. A liga passou a investir muito mais na organização das performances e no convite a nomes renomados, como o Aerosmith e o NSYNC (2001), o U2 (2002), Janet Jackson (2004), Paul McCartney (2005), os Rolling Stones (2006), Prince (2007), The Who (2010), entre tantos outros artistas que deixaram sua marca no Super Bowl.

Claramente, o show do intervalo carregava um perfil muito específico em torno do rock e dos medalhões da música, no qual a NFL acreditava que seria a melhor porta de entrada para novos espectadores. Nos últimos anos, porém, o retrato da audiência mudou aos poucos, e por consequência, o Super Bowl também: em um mundo transformado pela internet, as redes sociais passaram a repercutir cada vez mais o evento, chamando a atenção de um público mais jovem — um novo alvo para a NFL.

O primeiro flerte do Super Bowl com o pop aconteceu em 2011, quando a febre do The Black Eyed Peas os levaram ao show do intervalo. Foi em 2012, porém, que o gênero assumiu definitivamente o evento com ninguém mais, ninguém menos que Madonna, que teve um pico de 114 milhões de espectadores durante sua performance — a mais assistida de toda a história do Super Bowl até então. 

A história do Super Bowl, entretanto, carrega uma mancha muito nítida: desde sempre, o principal objetivo da NFL foi reproduzir o som que ecoava nas rádios e nas paradas, mas somente dentro dos moldes específicos que buscavam. Por anos, o rap cresceu na mesma proporção que o pop, mas jamais havia despertado o interesse da liga até que os números de audiência na televisão passassem a cair a partir de 2018.

Os números e o engajamento encantaram a NFL, e desde então o pop se tornou uma marca registrada dos intervalos. Grandes artistas como Beyoncé (2013), Bruno Mars (2016), Katy Perry (2015), Coldplay (2016) e Lady Gaga (2017) passaram pelos jogos e quebraram recordes importantes de audiência para o evento, com uma enorme contribuição para a globalização da liga.

A chegada do rap ao Super Bowl

No mesmo ano, o rap se tornou o gênero musical mais ouvido nos Estados Unidos, de acordo com um relatório da Nielsen Music que apontava uma grande influência dos serviços de streaming nas maneiras de se consumir música. Nos anos seguintes, o estilo cresceu ainda mais e assumiu o mesmo posto a nível mundial, conquistando a atenção e o destaque que há muito tempo merecia.

Em busca de novas tendências para o Super Bowl, a NFL decidiu homenagear o rap pela primeira vez em 2022 com um encontro histórico. Em sua 56ª edição, que acontece neste domingo (13) no SoFi Stadium, em Los Angeles, Dr. Dre, Snoop Dogg, Mary J. Blige, Eminem e Kendrick Lamar apresentam os seus sucessos em um show que simboliza não só um feito inédito para o hip-hop, mas também um marco cultural para a música.

Desde as suas origens, a cultura hip-hop sempre foi marginalizada pela imprensa, passando a ser vista com maus olhos por grande parte do público até, de fato, estabelecer-se na mídia. Por quase 50 anos, gerações de artistas tiveram que ultrapassar diferentes barreiras para conquistarem um espaço próprio, e o Super Bowl marca uma parte da reparação que a indústria deve ao rap há tanto tempo.

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Foto: Divulgação/NFL

A chegada ao evento, entretanto, parte de um processo que tem acontecido silenciosamente nos últimos anos. Em 2020, a Roc Nation, gravadora de Jay-Z, começou uma parceria com a NFL que já demonstrou impacto nas duas últimas apresentações: em seu primeiro ano, Shakira e Jennifer Lopez protagonizaram um importante show para a música latina, e em 2021, The Weeknd levou o R&B ao palco.

A performance de 2022 é mais um reflexo da influência da Roc Nation, mas também de uma intensa transformação na indústria que não poderia ter outro palco. A cidade de Los Angeles é o lugar mais digno dos Estados Unidos para receber a apresentação, levando em conta o simbolismo que a Califórnia carrega para a cultura hip-hop. Dre começou a sua trajetória em Compton ao lado do N.W.A, grupo que teve um grande impacto na história do rap, e sua influência como produtor se manteve viva por gerações na sonoridade de vários de seus “pupilos”, incluindo Snoop Dogg, o retrato dos anos 90, e Kendrick Lamar, o maior letrista da atual geração. 

Fora da Califórnia, Mary J. Blige também virou um símbolo como um dos nomes mais celebrados do hip-hop, ainda que tenha se tornado famosa pelo mundo como “a rainha do soul” e uma das maiores cantoras do R&B. Eminem também se consagrou como um dos artistas mais marcantes do rap no novo milênio, com uma forte relação com o próprio Dr. Dre em sua carreira.

Além do elenco principal, também foi confirmado que dois rappers surdos estarão presentes durante o show: Sean Forbes e Warren “WaWa” Snipe. A performance é vista como um ponto precursor para a acessibilidade nos jogos, sendo a primeira vez que intérpretes da língua de sinais também farão parte da apresentação ao vivo.

“Nós vamos abrir mais portas para os artistas de hip-hop no futuro e nos certificar que a NFL entenda que isso deveria ter sido feito há muito tempo”, disse Dr. Dre durante uma das coletivas de imprensa no decorrer da semana. “Eu acho que vamos fazer um trabalho fantástico. Vamos fazer algo tão grande que eles não vão mais poder nos negar esse espaço no futuro”, complementou.

Os reflexos dentro da NFL

A aproximação com o rap, uma das maiores heranças da cultura negra, também é uma tentativa da NFL de reforçar o seu compromisso com a representatividade depois de anos de polêmica. Em 2016, o quarterback Colin Kaepernick, do San Francisco 49ers, começou a se ajoelhar na execução do hino estadunidense antes das partidas como um protesto contra o racismo e a violência policial no país. Após o fim do seu contrato com o time, o jogador nunca mais recebeu espaço em nenhuma equipe da liga, o que acendeu vários debates sobre a forma que os donos da franquia e a própria NFL lidaram com o tema internamente.

Desde então, Kaepernick nunca mais pisou em um campo de futebol americano como jogador, mas se tornou um símbolo de resistência no esporte e na sociedade norte-americana, ajudando a levar o debate ao próximo nível. Em 2017, quando o caso ainda era muito recente, o próprio Jay-Z recusou uma proposta para se apresentar no Super Bowl, encorajando outros artistas a fazerem o mesmo em meio aos atritos com o hip-hop — aparentemente, amenizados após o acordo com a Roc Nation.

A NFL, porém, ainda é palco de acusações nos dias de hoje. Apesar de 70% dos jogadores da liga serem negros, nenhum dos proprietários de seus times são, e hoje, apenas dois técnicos de todas as 32 equipes são negros: Mike Tomlin, do Pittsburgh Steelers, e Lovie Smith, do Houston Texans. Em janeiro, Brian Flores, que liderou o Miami Dolphins nas duas últimas temporadas, foi demitido e, na busca por um novo cargo, processou a NFL alegando que ele e outros profissionais haviam sido discriminados durante o processo seletivo de outras franquias.

Espera-se que o próximo show do intervalo, ainda que esteja muito distante de uma forma realmente eficaz de combater a desigualdade racial na liga, seja um indicativo de que a NFL esteja apontando para uma direção diferente dentro da cultura popular nos Estados Unidos. O discurso, entretanto, não se sustenta: afinal, é injusto que a liga se aposse da cultura negra somente como uma maneira de entreter ao público, sem endereçar as suas lutas de maneira eficiente dentro e fora do campo.

O intervalo da 56ª edição do Super Bowl terá dois lados: um para a NFL, e outro para o rap. Por 15 minutos, a final será o palco de um verdadeiro espetáculo visual e musical, vista por milhões de espectadores e com a promessa de marcar uma nova fase para a liga. Mas assim que as luzes apagarem, toda a festa será em vão se a atitude nos bastidores não mudar.

Por outro lado, a noite marca uma celebração histórica do hip-hop, honrando as suas várias décadas de luta por reconhecimento e por valorização na indústria musical nos versos de cinco dos seus maiores representantes, em um dos maiores palcos e audiências que o rap já alcançou.

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