Por Manuela Sant’Ana e Vitória Roque – A Inteligência Artificial já se encontra presente em diversas esferas do nosso dia a dia. No universo musical, essas ferramentas podem ser utilizadas, por exemplo, na criação de playlists automatizadas nas plataformas de streaming. Já existem diversas versões de canções usando vozes de artistas em parcerias inusitadas, diferentes covers e até mesmo lançamentos de cantores e cantoras que já não estão mais entre nós.
A grande questão é: até que ponto isso pode afetar a indústria musical? Como ficam os direitos de cada uma das partes envolvidas? O que as gravadoras e os artistas pensam disso?
Como a Inteligência Artificial na indústria musical funciona no Brasil?
De modo geral, o registro de músicas no Brasil é realizado com a apresentação de um formulário com seus dados pessoais e, se caso a obra for constituída por mais pessoas, todas devem constar como autoras da música, conforme explica a advogada Joicemara A. Gonçalves de Oliveira, especialista em propriedade intelectual e diretora da empresa Brandon Marcas e Patentes.
Desde a partitura, letra (se houver) e mais, tudo deve ser encaminhado juntamente com os documentos pessoais e comprovante de pagamento, para então ser emitido o certificado que comprova a autoria de obras. Segundo Joicemara, os sistemas de Inteligência Artificial ainda não foi regulamentada no Brasil, porém há um projeto de lei que visa estabelecer regras e limites para a atuação da IA, o PL 2338 de 2023, que atualmente está em trâmite no senado.
“De acordo com o PL, há autorização para uso de Inteligência Artificial em obras, desde que se restrinja às instituições de pesquisa, jornalismo, museus e bibliotecas e que a finalidade não seja reprodução ou distribuição”, explica.
Para quem vão os royalties?
Segundo a Lei n.º 9.610/98 lei do direito autoral, que diz que o autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica (art. 11), para se aferir os royalties devidos, podem estar envolvidos gravadoras, empresários ou mesmo empresa na qual o artista faça parte, conforme detalha Joicemara, com base na previsão do art. 4º:
“O legislador deixa claro que, por mais que sejam realizados diversos contratos de exploração da obra, deve-se priorizar o autor. A cessão ou licença de uso de uma obra intelectual deve ser feita de maneira restrita, isto é, para cada uso da obra intelectual implicará uma autorização e um novo contrato com o autor ou titular dos direitos autorais”.
Dessa maneira, é bom relembrar grandes casos que estouraram nas plataformas digitais que utilizaram vozes de artistas conhecidos para músicas ditas inéditas, como foi o caso da falsa colaboração entre Drake e The Weeknd, uma faixa chamada “Heart on My Sleeve”, que foi banida justamente por não ter a permissão do próprio artista e nem das gravadoras para o uso.
“Outro ponto que chama a atenção se refere ao compromisso que cada plataforma possui de cumprir com a não violação da propriedade intelectual. Por isso, quando há iminente violação, como foi o caso exemplificado, as plataformas devem extinguir o conteúdo”, reforça Joicemara.
A advogada continua, explicando como os royalties para a IA serão indevidos, “pois a sua criação será a partir de uma ilegalidade que se utilizou da voz de outra pessoa sem sua autorização”. “Por mais que seja uma criação inédita por parte da IA a partir de seu aprendizado contínuo e sem utilização de vozes ou recursos de pessoas, a IA não tem personalidade jurídica para obter o direito de receber os direitos patrimoniais decorrentes de royalties”.
Especialista da empresa de tecnologia Alura e responsável pelo Podcast Bolha Dev, Marcus Mendes mostra mais possibilidades – como as plataformas que vêm se preparando para oferecer um serviço de réplica de vozes ou instrumentos de artistas famosos para que isso seja usado como base para composições autorais de fãs.
A artista Grimes é um exemplo recente dessa prática. Em uma publicação no Twitter, ela incentivou o uso de sua voz em músicas geradas por IA. No entanto, ela avisou que, nesses casos, dividirá 50% dos royalties com os criadores das faixas. “Eu acho legal essa fusão com as máquinas e gosto da ideia de abrir o código de toda a arte e acabar com os direitos autorais”, escreveu.
Há casos em que o próprio artista revê suas gravações para conseguir lançar músicas inéditas. Paul McCartney anunciou, em junho deste ano, que está trabalhando para lançar a última música inédita do The Beatles. Com ajuda da IA, o músico conseguiu extrair a voz de John Lennon (1940-1980) de uma antiga canção que continha também um piano. O lançamento está previsto para ainda em 2023 (via BBC).
Da parte legal, a advogada Joicemara detalha que, se houve a autorização para a utilização das vozes dos artistas, eles que serão os detentores dos direitos. “Aqueles que criaram faixas, só os podem fazer com autorização. Considero esse ponto bastante delicado, pois se o próprio artista pode fazer originalmente uma música, seria inútil utilizar IA para reprodução de sua voz”, aponta. “Nesse caso [The Beatles], não foi uma reprodução, e sim a IA foi utilizada apenas para limpar os áudios gravados anteriormente”.
Violação dos direitos
Para o caso de um artista ter sua voz plagiada, ele pode acionar as plataformas que devem derrubar a música de imediato por violação dos direitos autorais, conforme explica Joicemara. “Como todo o acesso na internet deixa um rastro, é possível se chegar a quem cometeu a violação e trazer todos os envolvidos para que respondam num processo judicial. O artista tem total direito de derrubar qualquer criação com sua voz, imagem ou outros atributos pessoais que são inerentes a sua personalidade jurídica”, complementa.
Mendes também falou sobre as complicações legais que permeiam o uso da IA na indústria musical. “O emprego de IAs, especialmente na criação conjunta de obras entre fãs e artistas, irá desafiar a questão de acordos, contratos e outras convenções assinadas entre artistas e gravadoras sem qualquer tipo de previsão do emprego dessas tecnologias”, explicou.
“Se até hoje a indústria fonográfica ainda parece estar se acertando com o mercado de streaming – afinal, ainda é comum vermos lançamentos de músicas ou de faixas específicas apenas em uma ou outra região do mundo, apesar dos públicos serem cada vez mais globais –, a chegada de novas formas de criar, distribuir e consumir música certamente implicará em questões legais que até bem recentemente sequer eram uma possibilidade técnica”, completou o especialista.
Uma arte sincera?
Além das questões de direitos autorais, um dos questionamentos em relação ao uso da inteligência artificial é a “sinceridade” da criação. Se a música – ou qualquer outro tipo de manifestação artística – é feita através de uma plataforma ou ferramenta baseada em IA, aquele conteúdo pode ser considerado arte?
Para Mendes, a resposta é sim. “Essa questão também obriga uma nova forma de entender o significado do termo composição. Artistas são, por natureza, pessoas criativas”, comenta, dando exemplo de Hermeto Paschoal, que faz solos com uma chaleira, definitivamente um instrumento não tradicionalmente usado para composição musical. “Artistas de percussão transformam praticamente qualquer superfície em um acessório para exercitarem a sua criatividade. Com a IA, é exatamente a mesma coisa”, justifica.
Ele prosseguiu, falando como “a arte de quem compõe com a ajuda de uma IA é tão sincera quanto aquela de quem compõe com uma guitarra comprada numa loja”. “São ferramentas usadas em favor da expressão criativa. Claro que haverá quem diga que esta arte assistida pela tecnologia não é música, mas essas pessoas provavelmente também dizem o mesmo sobre Kraftwerk desde os anos 70”.
Ponto de vista dos especialistas
Marcus Mendes acredita que o uso de IA pode ajudar na descoberta de novos ou novas artistas nas plataformas de streaming. “Se, hoje em dia, as plataformas analisam de forma agregada as preferências de quem as usa para fazer recomendações, o emprego de IAs pode oferecer recomendações ainda mais certeiras levando em conta as preferências de cada assinante”.
Na opinião de Mendes, para gravadoras e artistas, o emprego de IA pode ajudar na descoberta de tendências de uma forma muito mais eficiente. “A rapidez para analisar e cruzar dados, por exemplo, pode trazer à tona tendências de mercado que de outra forma poderiam passar despercebidas”.
Já Joicemara acredita que a IA deve ser utilizada como ferramenta para expandir a criatividade de cada um. “A devida regulamentação da IA e sua fiscalização com certeza contribuirão para a utilização de maneira consciente da população”, finaliza a advogada.
O contraponto no uso de IA na música
Entretanto, a indústria da música ainda não é totalmente receptiva ao uso da Inteligência Artificial. Em abril, a Universal Music Group enviou cartas para empresas de streaming – incluindo Spotify e Apple Music –, proibindo o uso dos trabalhos de artistas ligados ao grupo no treinamento das plataformas de IA.
“Não hesitaremos em tomar medidas para proteger nossos direitos, assim como o de nossos artistas”, declarou o conglomerado. À época, no mês anterior, o Spotify havia anunciado um recurso de rádio sustentado por Inteligência Artificial, que se tratava de um DJ cuja função é criar playlists personalizadas para cada usuário, enquanto usa sua voz artificial para fazer comentários e sugestões.
O Tracklist entrou em contato com as gravadoras musicais Universal, Sony e Warner em busca de uma declaração sobre o uso de IA e como isso influencia seus artistas. Porém, até o fechamento desta publicação, não houve retorno por nenhuma das partes.