De alguns anos pra cá, o rap nacional foi tomado pelas vozes de Tasha & Tracie. Na internet, nas paradas musicais e nos outdoors da cidade, as gêmeas do Jardim Peri se tornaram os símbolos da nova geração de artistas brasileiros pela forma autêntica de retratar a própria realidade nas rimas e nas batidas.
A caminhada, porém, acontece há muito tempo antes da fama. Antes mesmo de começarem a gravar suas próprias músicas, Tasha e Tracie Okereke trabalhavam juntas no Expensive Shit, blog em que publicavam editoriais sobre música, moda e ativismo, inspiradas pelos universos que faziam parte do seu cotidiano.
As suas influências criativas sempre estiveram ao seu redor — não apenas na rua, mas também dentro de casa. Filhas de mãe brasileira e pai nigeriano, as gêmeas cresceram com um contato muito próximo com diferentes culturas africanas, uma herança que carregam nas formas de escrever, cantar e se vestir.
Hoje, as gêmeas são os rostos da nova campanha global da Adidas, e a novidade foi anunciada em um evento especial realizado em São Paulo. O Tracklist esteve presente e conversou com Tasha e Tracie sobre a sua trajetória, as suas principais referências pessoais e as inspirações por trás das suas músicas, que hoje chegam a diferentes partes do mundo — inclusive para nomes como Kendrick Lamar.
O encontro entre rap e funk na música
Por muito tempo, o hip-hop e o funk existiam em universos distintos dentro de São Paulo. Entre os motivos, o principal era o preconceito que o funk sofria por parte dos rappers e de artistas de outros gêneros, algo que somente mudou na cena musical nos últimos anos.
Hoje, é até difícil imaginar que o rap, o trap e o funk vivam em mundos diferentes. São vários os exemplos de artistas que abraçaram o encontro de ambos os gêneros, e talvez Tasha & Tracie seja o mais nítido deles. As canções da dupla têm muitos reflexos dos estilos que faziam parte do seu dia a dia, como o próprio funk, que ganha uma nova dinâmica dentro das músicas de rap — à exemplo de sucessos como “Desce Licor” e “Tang”.
“Quando a gente começou como DJs, a gente já foi expulsa de festas de hip-hop porque a gente tocou funk, e hoje é quase impossível você fazer uma festa de hip-hop e não ter um momento de funk — quase todas têm que tocar trap, e quase todas têm que tocar funk”, comentou Tasha.
Não apenas o funk e o trap se inseriram na cultura hip-hop, mas vários outros estilos fazem parte do imaginário criativo das cantoras. “Pra gente, é muito parecido (…) e a gente acha que o pagodão, o bregafunk e todas essas coisas têm muitas coisas em comum, sabe? Porque às vezes, a melodia é diferente, mas tem muitas coisas que conectam… O reggae, o dancehall, as batidas, alguns assuntos, movimentos estéticos que mudam de periferia pra periferia”, disse Tracie.
Referências para Kendrick Lamar
Em junho, Kendrick Lamar, um dos maiores nomes do rap internacional na atualidade, tornou pública uma conta secundária no Instagram, no qual publicava algumas de suas referências artísticas e vídeos da sua rotina. Entre as postagens, estava uma foto do videoclipe de “Diretoria”, assinado pelo artista visual NÏCO, o que rapidamente chamou a atenção dos fãs de Tasha & Tracie.
“Pra gente fez muito sentido, porque a gente sempre acreditou que a gente tinha uma conexão com outros artistas que são geminianos, e que a gente se identifica muito — a gente é meio supersticiosa nessa parada, né?”, comentou Tracie, que também disse que elas descobriram sobre a publicação no dia do seu aniversário.
Curiosamente, a dupla foi recém-anunciada como uma das atrações do GP Week, festival que acontece em São Paulo nos dias 4 e 5 de novembro que terá o próprio Kendrick como um dos headliners. “Vai ser surreal fazer um show no mesmo dia, porque é uma honra mesmo (…) Essa é uma influência muito grande que a gente tem, é o que a gente almeja ser e trabalha pra conquistar”, declarou a rapper.
Leia a entrevista com Tasha & Tracie na íntegra:
TRACKLIST: Prazer, Tasha! Prazer, Tracie! Tudo bem? Queria começar perguntando pra vocês sobre a influência que a moda teve na carreira de vocês. Vocês começaram a carreira com um blog, o Expensive Shit, em que vocês destacavam suas referências na moda e na música… Como que esses diferentes mundos se conectam na arte de vocês?
TRACIE: Pra gente, a moda sempre esteve muito conectada com a música, porque a gente começou o blog muito inspirada por música… Até as nossas referências da moda são totalmente inseridas no movimento musical. A nossa maior referência na moda é o Dapper Dan, que é uma figura bem olhada no meio do movimento hip-hop. As capas de disco também sempre inspiraram muito a nossa estética, e as coisas que a gente gosta, e as produções das fotos do blog que a gente fazia… Tudo a gente se inspirava muito nas capas de disco, então sempre esteve muito conectado.
TASHA: E nossos pais também sempre gostaram muito de música, e sempre gostaram muito de se vestir. É uma coisa que sempre esteve atrelada à gente. Meu pai é nigeriano e sempre teve restaurante, e a gente conviveu com muitos africanos, então a gente ouvia música de várias etnias da África… A gente cresceu ouvindo também, com a minha mãe, as músicas que o pessoal da quebrada escutava — desde forró até uns sons de antigamente. Esteticamente, a nossa memória afetiva também tem muito a ver com isso, porque são os momentos que a gente lembra quando criança, e acredito que, até hoje, eles impactam muito no jeito que a gente se veste.
TRACKLIST: Olhando pra trás, como é, pra vocês, estar estrelando a nova campanha da Adidas?
TASHA: Pra gente, é muito legal, porque a gente tem uma ligação muito grande com a Adidas — e a Adidas tem uma ligação muito grande com o hip-hop; o primeiro casamento do rap com uma marca foi com a Adidas, com o Run-DMC. Então a gente se sente muito privilegiada, e também é uma marca com a qual a gente já caminha há anos juntos. Hoje, mais do que nunca, é uma parceria muito legal e que conversa com a gente de verdade, não é algo forçado, nem nada.
TRACIE: É uma marca que a gente sempre gostou, que a gente sempre consumiu, e que pra gente tem um significado histórico dentro do movimento que a gente ama e faz parte, então pra gente, faz muito sentido.
TRACKLIST: Agora falando um pouco sobre música: eu acho muito interessante que a música de vocês tem uma mistura de estilos muito forte que parte das suas influências, como o funk, o rap e o trap… Queria ouvir um pouco vocês sobre como essas influências surgem no processo criativo de vocês — acredito que de uma forma muito natural, né?
TRACIE: Acho que cada área do Brasil tem o seu ritmo periférico que domina, e a gente sempre achou que esses ritmos conversam muito entre si. Você vai ver no mundo inteiro, os ritmos periféricos conversam muito… Você vai ver as paradas do reggaeton, as coisas novas que tão rolando, e elas têm muito a ver com o funk daqui, com o trap daqui. E quando a gente começou, a gente já gostava de música e conhecia muita coisa de música, mas a gente não sabia que tinha um rolê de hip-hop em São Paulo. Quando a gente começou a ir nesse rolê, tinha uma separação muito grande com o funk e um preconceito muito grande.
Quando o trap veio, meio que uniu tudo, porque vários funkeiros têm rappers como referência… O rap na periferia sempre foi uma coisa muito forte aqui em São Paulo, e a gente sempre achou que tinha tudo a ver. A gente era funkeira antes, a gente nunca tinha ido num rolê de rap, e a gente sentia como as pessoas separavam e não curtiam. Quando a gente começou a tocar, a gente foi expulsa de lugar que a gente foi contratada por tocar funk. Então é recente, essa aceitação com o trap, com o funk, e é uma coisa que, pra gente, não tem sentido separar!
Pra gente, é muito parecido, muito igual, e a gente acha que o pagodão, o bregafunk e todas essas coisas têm muitas coisas em comum, sabe? Porque às vezes, a melodia é diferente, mas tem muitas coisas que conectam… O reggae, o dancehall, as batidas, alguns assuntos, movimentos estéticos que mudam de periferia pra periferia. Pra gente, é muito natural, e graças a Deus, todo mundo tá percebendo isso, até os caras mais velhos do hip-hop tão percebendo.
TASHA: O trap veio pra salientar as semelhanças, e hoje é quase que a mesma coisa. Antes, quando a gente começou como DJs, a gente já foi expulsa de festas de hip-hop porque a gente tocou funk, e hoje é quase impossível você fazer uma festa de hip-hop e não ter um momento de funk — quase todas têm que tocar trap, e quase todas têm que tocar funk. Hoje, a gente vê essa fusão dos artistas de funk se sentido mais à vontade de colar, porque eles se sentiam “burros”, eles se sentiam muito longe, e na verdade eles têm muito pra acrescentar com a gente, então eu acho que tava mais do que na hora dessa fusão.
TRACIE: Essa parada que ela falou sobre eles se sentirem “burros” é uma coisa que a gente conversava muito quando a gente conhecia um MC de funk, e aí a gente falava sobre fazer música, e as pessoas falavam: “Não, o jeito que vocês rimam é muito acima, as letras e tal, eu não consigo desenrolar, é muito inteligente”, e tipo assim, tem vários funkeiros com muitas ideias inteligentes, várias cadências diferentes e inteligentes, com influências diferentes, que são pessoas inovadoras. Essa separação, quando são coisas iguais, faz até a outra pessoa ter menos autoestima e achar que ela não pertence, sabe?
TRACKLIST: Recentemente, vocês foram confirmadas como uma das atrações do GP Week, que vai ter o Kendrick Lamar como headliner, e esses tempos, ele postou uma foto de um clipe de vocês no Instagram como uma das referências dele! Como isso chegou até vocês
TRACIE: Foi muito louco, porque foi no dia do nosso aniversário! É um artista que a gente acompanha muito, e ele faz aniversário no dia 17 de junho — a gente sabe até a data de aniversário porque a gente é fã mesmo. Inclusive, uma das grandes frustrações da nossa vida foi que, uma vez, a gente ganhou um ingresso do Lollapalooza pela Adidas pra ir no show dele e a gente passou uma humilhação muito grande — a Tasha me fez passar uma vergonha muito grande! (risos) A gente tinha um trabalho antes, e a gente foi correndo. Quando a gente chegou, o portão já tava fechado, e a minha irmã correu, tentou entrar em todos os portões, gritando, chorando e todo mundo olhando, e a gente passou muita vergonha.
TASHA: Eu parei de fazer rap nesse dia! (risos) Eu falei pra todo mundo: “Eu não vou fazer mais nada! Eu não vou fazer mais rap! Não acredito que eu perdi”.
TRACIE: Pra gente, é aquele bagulho do mundo girando, sabe? Quando a gente ficou sabendo, foi um dia depois do nosso aniversário. Eu vi aquela página dele, eu entrei e olhei, mas eu não vi isso, e aí no dia seguinte, uma amiga postou e eu falei “nossa, mentira!”. Pra gente fez muito sentido, porque a gente sempre acreditou que a gente tinha uma conexão com outros artistas que são geminianos, e que a gente se identifica muito — a gente é meio supersticiosa nessa parada, né? Então, pra gente, foi surreal. E vai ser surreal fazer um show no mesmo dia, porque é uma honra mesmo, ele é o que a gente almeja ser.
A gente acredita que nem todo artista tem que ser versátil pra ser bom: tem artista que é monotemático, tem artista que tem o seu nicho, tem vários artistas que a gente admira, tipo Devin The Dude, que ele tem vários álbuns em que ele fala sobre cannabis de várias formas diferentes — uma música é sobre enrolar, outra música é sobre uma brisa… E tem artista que é versátil, igual o Kendrick, que a gente consegue ver ele fazer uma coisa old school, muito braba, e ele consegue fazer uma coisa nova sem ficar brega, e tudo aquilo é ele, porque ele faz do jeito dele e da cara dele. Então essa é uma influência muito grande que a gente tem, é o que a gente almeja ser e trabalha pra conquistar — não em questão de números e visibilidade, mas na questão de artista mesmo, da gente se olhar e ter essa autoestima de falar: “Nossa, a gente alcançou esse nível de maestria”, tá ligado?