Com o recém-lançado nesta terça-feira, 28 de junho, o EP “Meu Santo É Forte”, Mc Tha traz regravações de músicas selecionadas da cantora Alcione. Trazendo elementos do funk para dentro das canções, ela nos conta mais em entrevista sobre seu projeto e como foi a produção do “Clima Quente Show”, seu programa de TV. Leia a entrevista completa a seguir!
Entrevista com Mc Tha
Como foi o processo para escolher essas músicas para incluir no EP?
Logo quando eu lancei as coisas do meu primeiro álbum, tinha uma brincadeira no Twitter que as pessoas ficavam pegando fotos da Alcione mais nova e comparando com algumas fotos minhas, querendo trazer algumas semelhanças. Mas acho que mais esteticamente do que exatamente pela fisionomia, né?
Aí eu guardei essa informação. E pensei: ‘poxa, seria legal se um dia eu fizesse um projeto de regravar alguma música dela e fazer uma capa parecida, uma releitura’… Só que isso ficou guardado, nunca pensei em botar para a frente.
Até que agosto do ano passado, conversando com Mahal Pita, que é o produtor do álbum, eu comentei sobre essa ideia com ele. A gente se animou muito em produzir e colocar esse processo para frente.
Eu já tinha um processo bem íntimo com a faixa “São Jorge”. Foi com ela que eu conheci o repertório afro-religioso da Alcione.
Eu conhecia muitas músicas dela e ela também como uma cantora romântica. A minha família não vem do samba, então eu não tenho esse histórico de conhecer toda a obra da Alcione desde criança. Minha família beirava mais a música sertaneja, o baião, forró, música brega… Mais esse universo nordestino.
Mas, a faixa “São Jorge” eu conheci dentro do terreiro porque é uma música que a gente canta nas cerimônias. Tinha um áudio dessa música no grupo do terreiro que eu sempre ia lá para escutar, e um dia esse áudio sumiu. Falei: ‘vou tentar procurar no YouTube’.
Quando eu fui para o YouTube eu descobri que quem cantava aquela música era a Alcione. Para mim foi um choque. A partir daquilo, comecei a conhecer a Alcione de um outro jeito. Eu já conhecia também “Figa de Guiné”, e foi depois de um tempo que descobri que era ela quem cantava.
Quando eu comentei com o Mahal sobre essa ideia, na mesma hora a gente pegou o celular e fomos para o Spotify. Foi tudo muito rápido. Queria fazer “São Jorge” que é uma que eu toco nos shows, depois “Figa de Guiné”, e aí escutamos as outras três [“Afrekete”, “Corpo Fechado” e “Agolonã”]. Mas foi muito rápido, não foi nada de dias pesquisando, foi muito natural.
Foi muito da inspiração do momento, né?
É, foi muito do ânimo. Assim, ‘vamos ver como que dá para colocar’. Tanto que depois, conhecendo outras músicas, eu falei: ‘nossa, mas essa daqui também era boa, viu?’ (risos). É que quando a gente vai vasculhar esses artistas mais antigos, a gente descobre muita coisa, né?
Muita coisa que ficou lá, de outro tempo. “Figa de Guiné” eu acho que é unanimidade, todo mundo conhece, é a que eu acho que as pessoas têm mais contato, tanto pessoas de terreiro quanto fora de terreiro. Mas, quando você vai vasculhar, tem muitas outras músicas que foram gravadas em disco e que ficaram. Se for vasculhar tudo, tem que fazer um especial só da Alcione!
Pois é!
Muita coisa! E é maluco isso, né? A Alcione hoje em dia é muito conhecida pela música romântica. Pelo menos para mim, essa ideia dela… Claro, ela é uma mulher negra, então não está dissociada da música afro, nunca. Mas na minha cabeça não chegava essa informação.
Acho também que esse projeto é importante para isso. Trazer à tona essas canções que já foram cantadas, que tem compositores incríveis.
Isso que eu ia perguntar. Você teve todo o processo de trazer batidas super contemporâneas para músicas de, literalmente, décadas atrás. Foi muito difícil essa adaptação?
O motivo de a gente começar esse projeto foi essa coisa da Alcione. E, na feitura dele, o projeto foi se desdobrando em várias perspectivas. Quando paramos para pensar como seriam essas produções musicais, a gente se esbarrou em uma pesquisa que eu já tinha aberto em “Rito de Passá” e até na “Comigo Ninguém Pode”, que é trazer o funk para dentro do terreiro e o terreiro para dentro do funk também.
O funk e o terreiro parecem que são coisas que estão de costas um para o outro, né? Tipo, acho que, sei lá, 80% dos funkeiros, arrisco dizer, estão muito mais ligados a igreja evangélica, uma fé de um deus evangélico, do que a tradição afro de terreiro. Então, a gente achou importante trazer isso. Com o tempo as informações foram firmando cada vez mais esse trabalho nesse lugar. Foi difícil. [Mahal] teve um momento que falou para mim assim, que era ‘difícil porque são sambas’.
Samba é muito complexo e a música tem um espírito. Por mais que a gente tente trazê-la para o atual, ela tem um espírito dela que vai até ali.
Tipo, eu consigo me atualizar até aqui, daqui para frente vocês que têm que se reinventar aí para caber dentro do meu tempo. A música “Afrekete”, por exemplo, se você ouvir a original, tem uma variação de melodia na primeira estrofe que eu fiz de um jeito diferente porque eu não conseguia cantar! (risos). Eu falava: “meu Deus!”.
Eu notei uma diferença muito sutil ali, mas ficou ótima a sua versão também!
Ficou, né?! E até para o Chibatinha [que fez a produção], músico lá de Salvador, que é da banda ÀTTØØXXÁ, mas que também tem um trabalho autoral como guitarrista, e ele que tocou todas as cordas do álbum. E nossa, ele sambou ali, ele que fez essa pesquisa que trouxe, junto com o Mahal, sobre as cordas, dessa coisa do samba, da música afro…
Nessa música, por exemplo, ele teve que simplificar muito, porque a música “Afrekete”, a original, tinha muita nuance harmônica e que para trazer isso para o funk, que é supersimples, foi bem difícil. Acho que foi uma das mais difíceis nesse sentido.
De adaptar?
É, foi, tanto que tive que adaptar tanto o que era tocado quanto o que era cantado. Essa melodia mesmo eu não conseguia fazer, aí tive que jogar para outro lado porque como a lógica era transformar em um funk, o funk não dá ser complexo, né? E aí a gente conseguiu um meio-termo.
Teve o MU540 nessa faixa também, que é um DJ e produtor de funk mesmo, da baixada santista aqui de São Paulo, e já é o segundo trabalho meu que ele produz. A primeira música foi “Avisa Lá”, que foi no álbum “Rito de Passá”, e aí ele já trouxe um outro olhar, bem interessante.
E como foi essa ideia de recriar todo um programa de TV, o “Clima Quente Show”, para mostrar as músicas?
Eu acho que a minha obra está muito associada ao audiovisual. Eu nunca lancei música sem clipe, por exemplo. E não clipe por clipe, para querer ser bonita e mostrar que estou bonita. Eu tenho que trazer, com os clipes, alguma parte da história que as pessoas nem sempre conseguem destrinchar.
Às vezes elas ouvem a música e entendem de um jeito – o que eu acho legal também, cada pessoa dá uma interpretação do que está sendo cantado – mas aí com o vídeo acho que eu consigo trazer um pouco do sentimento que eu quis passar na composição.
Só que nesse projeto não fazia sentido fazer clipe, né? Para cinco faixas, pós-pandemia, não tinha verba para isso (risos). E é isso, acho que era outra coisa mesmo, então a gente teve essa ideia de fazer um programa de TV, eu acho que até para relembrar o desavanço que a gente teve, de hoje em dia não termos a comunidade de terreiro, afro, representados na TV, é nulo. Acho que um pagode que toca na TV de vez em quando…
Mas a gente não tem mais esse espaço que outras cantoras tinham, e eu sei que também deve ter sido uma lida difícil. Mas, sei lá, você vê uns vídeos antigos da Alcione no programa do Faustão cantando sobre orixás, sabe? Aí a Alcione apresentando um programa de TV nos anos 70 [“Alerta Geral”], e trazendo uma galera do samba, falando das dificuldades da música, da questão racial…
Hoje em dia, é uma realidade que eu tenho muita fé de que a gente pode transformar, mas ao mesmo tempo uma grande tristeza, porque eu sei que o rumo que as coisas estão indo.
Ainda mais no atual Brasil que estamos vivendo, da bancada evangélica, de todo dia ter um caso de intolerância religiosa novo na mídia, dá até uma tristeza. Mas a gente continua tendo esperança.
Então, para fechar com chave de ouro esse projeto, que tem muitas frentes: tem essa homenagem à Alcione, essa pesquisa do funk, tentando imaginar um funk como se fosse muito mais próximo das religiões afro, se tivesse essa conexão de referência, né?
Todos os elementos que os meninos usam no funk são usados dentro do terreiro. O ferrinho, o atabaque… Até as melodias dos pontos de terreiro são bem parecidas com as melodias de funk. Isso é bem maluco quando você pega para estudar mesmo…
A palma que a gente faz no terreiro é a mesma palma que é do funk. Então tem essa frente também, de tentar trazer esse outro imaginário de um funk na época da Alcione, se o funk tivesse sido mais próximo das religiões afro.
E tem também essa denúncia à intolerância religiosa, à falta de espaço. A gente sabe que tem intolerância religiosa, mas como que a gente, enquanto sociedade, colabora para também colocar essas religiões em um radar que elas possam se mostrar, que elas possam falar delas mesmas, mostrar sua cultura, sua vivência?
Então, eu acho que o programa conseguiu arrematar tudo. Porque lá eu também tive espaço para falar um pouco do porquê do projeto, que eu achava importante, para não ficar só: ‘Ah, só regravei a Alcione’, sabe? A curiosidade é que a gente gravou o vídeo antes de produzir as músicas!
Como assim?!
Foi! (risos). A gente gravou o vídeo quando tínhamos o rascunho das músicas ainda, não tinha produção fechada. Então, por exemplo, hoje, se eu fosse fazer esse vídeo, já viriam outras falas, outras ideias para falar ali dentro.
Mas eu acho que ele serviu como esse ponto, de eu criar meu próprio programa, já que ninguém me chama para me apresentar na TV. Já que ninguém toca a minha música em uma rádio grande. É eu criar esse imaginário, sabe?
E, ao mesmo tempo, relembrar a importância da Alcione dos anos 70, a importância dessas músicas… Acho que quando a gente pensou no programa de TV foi para arrematar todo o projeto. Foi o melhor meio de fazer isso.
Combinou bem certinho, a vibe muito nostálgica. Aposto que vai servir de nostalgia para muita gente.
Eu fico esperando meu programa de TV vir! (risos).
E você já tem até show marcado com a turnê do novo EP, né?
Tenho! A gente estava enganando o público (risos). Mas, o show do Cine Joia, aqui em São Paulo [30 de junho], e o show no Circo Voador no Rio de Janeiro, dia 8 de julho, vão ser os shows de estreia da turnê. [Ingressos SP aqui e RJ aqui].
Está tendo o lançamento do EP, do “Clima Quente Show”, mas também tem também o lançamento da turnê nova. Acabei de chegar em São Paulo, aliás, para começar a ensaiar essa semana, e estamos aí!
Ia perguntar sobre projetos futuros, mas vai ser focar nessa turnê nova, certo?
É. Acho que essa turnê nova, junto com todo esse trabalho novo, também é uma transição. Quando teve a pandemia, eu tinha acabado de lançar o álbum, tinham seis meses se não me engano. Então, eu rodei muito pouco.
As coisas começaram a acontecer, que eu ia fazer turnê na Europa, tinha o Lollapalooza, um monte de festival grande, aí fechou tudo. Então, o álbum “Rito de Passá”, por mais que ele já tenha três anos, ele é um álbum de seis meses, porque ele não rodou.
Eu fiz alguns shows em algumas cidades e estados, mas muita gente ainda tem vontade de assistir ao show do “Rito de Passá”, sabe? Mas eu também entendo que a pandemia me fez amadurecer muito, eu já estou em outra coisa, em algum lugar eu já estou em outro lugar…
E aí vim me preparando para começar também a produção desse álbum novo, que eu também já tenho tudo esquematizado. Então, “Meu Santo É Forte” vai servir como essa transição, e ao mesmo tempo vai servir para que eu consiga trazer também um pouco do “Rito de Passá” mais um tempo, caminhar com ele mais um tempo. Transformar o show para um show mais divertido, um show mais potente também.
Agora, o Mahal Pita além de produzir esse EP, ele faz a direção musical do meu show. Então, está sendo muito bom, porque eu precisava.
Todos nós precisamos, né? Um showzinho depois da pandemia… Ainda mais para um artista, ao estar finalmente nos palcos depois de tanto tempo.
Sim, tem sido bem divertido e cansativo também, porque eu sinto que o corpo ainda não voltou (risos).
É isso então! Muito obrigada pelo papo, foi um prazer conhecê-la!
Obrigada você!
Com direção de Rodrigo de Carvalho e Vitor Nunes, o programa fictício “Clima Quente Show” recebe artistas em desenvolvimento na cena atual da música brasileira e convida Mc Tha para apresentar as canções de “Meu Santo é Forte”.
Com um roteiro descontraído e desenvolvido pela cantora, o trabalho visual cria uma realidade em que o tempo se mistura e deságua na possibilidade de imaginar uma Alcione da época do programa “Alerta Geral”.
Confira “Meu Santo é Forte”: