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Crítica: “Sandman” abre o caminho para novos fãs e mostra potencial para o futuro

A adaptação do clássico das HQs sofre de inconsistências em seu enredo, mas é uma excelente introdução ao universo de Neil Gaiman

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Foto: Divulgação/Netflix

Por mais de três décadas, Neil Gaiman relutou em ceder os direitos de adaptação de sua maior e mais famosa obra, “Sandman”. A HQ foi publicada pela Vertigo, selo da DC Comics, em 1988 e tem influenciado diferentes gerações de quadrinhos desde então, despertando a atenção de muitas produtoras para levar o seu universo às telas do cinema e para a televisão — uma ideia que sempre se chocou com os receios do escritor e de seus fãs.

Depois de inúmeras tentativas, foi firmado um acordo com a Netflix em 2019 para a plataforma transformar a maior história do autor em uma série exclusiva. Entretanto, a negociação girou em torno de várias condições: Gaiman estaria diretamente envolvido com o desenvolvimento do projeto como produtor executivo, a fim de garantir o melhor futuro para a adaptação e aproximá-la ao máximo possível dos quadrinhos.

Após dois anos de trabalho e muitos outros de ansiedade, o resultado é animador. “Sandman” traduz várias das principais qualidades dos quadrinhos para a série, introduzindo bem o universo das HQs aos novos espectadores e conseguindo capturar a essência da obra na maior parte dos momentos — sejam eles inéditos, recriados ou conhecidos pelos fãs mais entusiastas.

Cercada por expectativas tão grandes, a série comete seus tropeços em relação à adaptação aos quadrinhos, principalmente nas formas que a narrativa se desenrola em um formato televisivo. Porém, “Sandman” mostra um potencial valioso para as próximas temporadas, e abre o caminho para novos fãs conhecerem mais a fundo o universo criado por Neil Gaiman.

ATENÇÃO: O texto a seguir contém spoilers da primeira temporada de “Sandman”

O universo de “Sandman” finalmente chega à televisão

Lançada na última sexta-feira (5), “Sandman” deu fim a décadas de espera, dúvidas e desconfianças por parte dos fãs. Nas palavras do próprio Neil Gaiman, em entrevista ao Omelete, o principal desafio da série era “trazer Sandman à vida de um modo que fosse absolutamente conhecido, estranhamento novo e encantador ao mesmo tempo”, renovando os quadrinhos para a atualidade sem abrir mão da essência que o consagrou.

A série acompanha a história de Sonho, também conhecido como Morpheus e Sandman, uma entidade responsável pelos sonhos de toda a humanidade, regendo-os de seu próprio reino sobrenatural, o Sonhar. Morpheus é um dos sete Perpétuos, família formada por seres ancestrais que existem desde o início do universo e simbolizam forças da natureza. São eles: o Sonho, Desejo, o Destino, a Morte, o Desespero, a Destruição e o Delírio.

“Sandman” tem início quando Sonho é aprisionado por um mago em busca da imortalidade, que conjura um feitiço para raptar a Morte, mas o captura por engano. Morpheus passa um século em cárcere, e sua ausência leva à destruição de seu reino e o abandono de seus habitantes — com exceção de Lucienne, seu braço-direito. Logo após a sua fuga, Sandman parte à procura de seus artefatos poderosos para reconstruir o Sonhar e restaurar a ordem dos sonhos.

Foto: Divulgação/Netflix

Diante de um enredo tão complexo e um mundo tão surreal, muitos acreditavam que adaptar “Sandman” em um formato live-action para uma nova audiência seria uma tarefa impossível. Tudo, porém, é bem apresentado desde o primeiro momento: a série mergulha os espectadores para dentro do universo de Neil Gaiman, sem parecer muito confuso aos espectadores mais novos ou muito estranho aos fãs mais antigos.

Na verdade, quem já leu “Sandman” certamente se sentirá abraçado pela série. A ambientação replica quase perfeitamente o universo dos quadrinhos, com passagens idênticas às HQs e efeitos visuais bem feitos para dar vida aos personagens e aos cenários da obra. É possível sentir o tato de Gaiman com a recriação de sua história, o que ajuda a explicar o sucesso da produção com os leitores.

A seleção do elenco, outro dos pontos fortes da série, também passou diretamente pelo escritor, que escolheu os nomes a dedo. Os atores ditam o clima da história em muitos momentos, incorporando seus papéis e reforçando ainda mais seu talento em suas performances. Tom Sturridge faz jus à personalidade sombria e imponente de Sonho, assim como Boyd Holbrook dá vida à uma versão vilanesca do Coríntio, as duas figuras mais frequentes da história.

O restante do elenco é formado por vários nomes de destaque. Johanna Constantine, que substitui o John Constantine dos quadrinhos, é muito bem apresentada por Jenna Coleman, do mesmo modo que Lúcifer é relida por Gwendoline Christie, famosa por viver a Brienne de “Game of Thrones”, e David Thewlis herda a personalidade angustiante de John Dee. 

Foto: Divulgação/Netflix

Entretanto, muitos dos personagens secundários não são tão bem aproveitados quanto poderiam, com participações curtas, apesar de ótimas. A Morte de Kirby Howell-Baptiste, Desejo de Mason Alexander Park e a própria Johanna, por exemplo, são muito bem introduzidos na série, com um episódio inteiro dedicado para cada, mas não têm espaço nos demais capítulos. É provável que boa parte dos personagens tenham um destaque maior na segunda temporada, mas a impressão que fica é que eles poderiam ter assumido papéis mais importantes na trama.

As releituras de “Sandman” aos tempos atuais

Uma das principais qualidades dos quadrinhos, a reflexão humana por trás de um universo fantasioso, também é retratada na série de sua própria forma. “Sandman” explora muito bem a relação entre o humano e o sobrenatural para meditar sobre a vida, deixando mensagens filosóficas e marcantes para os espectadores.

O quinto episódio, por exemplo, acompanha a história de John Dee em posse do rubi de Morpheus, com o poder de idealizar um mundo em que as pessoas não precisariam mais mentir umas às outras, levando a sociedade ao caos. Já no capítulo seguinte, Sonho se encontra com sua irmã, a Morte, protagonizando um forte diálogo sobre a finitude da vida.

“Sandman” está repleta de momentos icônicos que capturam a grandiosidade com a qual foram apresentados ao mundo nas HQs, ainda que em novas versões. A batalha de Sonho com Lúcifer é um desses casos: o embate não existe nos quadrinhos, mas foi muito bem introduzido por Gaiman na série e bem recebido pelos fãs.

Não apenas alguns trechos da história foram alterados, como as leituras de muitos personagens também foram atualizadas pelo autor. Além de Lucien e John Constantine terem recebido versões femininas na série, personagens como a Morte, que foi adaptada como uma mulher negra, e Desejo, um personagem não binário que utiliza pronomes neutros, também são exemplos de como a série se readequou aos tempos atuais e reforçou a diversidade do elenco.

Foto: Divulgação/Netflix

Uma história que poderia se desenrolar melhor

“Sandman” também tem suas inconsistências, principalmente quanto à adaptação de seu enredo para a televisão. O roteiro da série a prejudica em muitos momentos, tornando o ritmo da história um problema frequente. Por adaptar vários volumes das HQs em uma só temporada, os episódios misturam diferentes tramas ao mesmo tempo, fazendo com que a narrativa possa parecer muito mais apressada e desconexa do que seria caso se concentrasse em arcos específicos.

A reta final da série, por exemplo, sofre pela falta de coesão com a qual o enredo se desenvolve. Rose Walker, personagem crucial para os últimos episódios, só é apresentada no sétimo capítulo, e apesar dos leitores dos quadrinhos a conhecerem e entenderem sua importância, a trama não é tão bem explicada como poderia aos espectadores mais novos.

Por consequência, o ritmo de “Sandman” também decai ao fim da temporada, que se encerra de forma brusca e, até certo ponto, decepcionante. As soluções encontradas pelo roteiro para os arcos principais não são as mais convincentes e poderiam ter tido um impacto muito maior caso fossem melhor trabalhadas — fosse com episódios maiores ou até mesmo mais capítulos.

Apesar de ter seus tropeços e suas inconsistências, “Sandman” tem uma perspectiva animadora para o futuro. A série é uma excelente introdução ao universo de Neil Gaiman e tem um enorme potencial para a segunda temporada, com a oportunidade de corrigir a rota e tornar a experiência ainda mais marcante. O primeiro passo, porém, é promissor, e tende a ser apenas o início de uma história que merece a atenção do grande público.

8 / 10

Apesar de suas inconsistências, “Sandman” é uma excelente introdução ao universo de Neil Gaiman e tem um enorme potencial para a segunda temporada, com a oportunidade de corrigir a rota e tornar a experiência ainda mais marcante.

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