Muitos registros dos Beatles durante os anos 60 foram perdidos com o passar do tempo, enquanto outros foram transformados em filmes e documentários. A maioria deles, porém, desencontrou-se em meio à conversão para o universo digital — como é o caso de “Let It Be”, filme de 1970 dirigido por Michael Lindsay-Hogg que registra as gravações do que seria o último álbum lançado pela banda.
Mais de 50 anos após a sua estreia, a produção foi restaurada para os tempos atuais, em uma versão inédita lançada exclusivamente no Disney+ nesta quarta-feira (8). A nova edição da obra teve a imagem e o áudio recuperados em surpreendente qualidade, a exemplo do trabalho que foi feito no documentário “Get Back” (2021), dirigido por Peter Jackson e que se passa, inclusive, na mesma época que “Let It Be”.
O filme é um mergulho em uma das fases mais produtivas e complexas dos Beatles, em que gravaram alguns de seus trabalhos mais clássicos em meio a conflitos crescentes entre os integrantes. Por meio de gravações dos ensaios e das sessões que moldaram “Let It Be” (1970) e até mesmo alguns trechos de “Abbey Road” (1969), temos acesso a alguns do que seriam os últimos registros do grupo juntos.
Uma restauração direta de 1970
Nos primeiros minutos do longa-metragem, somos apresentados a um diálogo recente e descontraído entre Michael Lindsay-Hogg, responsável pela filmagem original de “Let It Be”, e Peter Jackson, que assina a direção de “Get Back”. Ambos os cineastas conversam sobre os vários significados que envolvem a obra, bem como a relação entre as suas produções.
“Let It Be” se passa no período de janeiro de 1969, mês em que os Beatles estiveram em estúdio para as gravações e ensaios daquele que idealizavam como o seu último projeto. A banda planejava não apenas o lançamento de um novo álbum de estúdio, mas também a realização de um show especial e a filmagem de um documentário, que se tornaria a obra de Lindsay-Hogg.
Vale pontuar que se trata de um trabalho que foi construído durante o desenrolar das gravações do disco e das negociações do último show dos Beatles. Inicialmente, a ideia era a de uma apresentação apoteótica em um anfiteatro, que se transformou na inusitada, mas marcante performance em um telhado de Londres em pleno horário comercial.
Em meio a tantos planos e ideias, o filme se concentra em alguns dos momentos mais intimistas e descontraídos entre Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr. É muito interessante acompanhar a naturalidade com a qual os integrantes pensavam, compunham e gravavam músicas como “Two Of Us”, “I’ve Got A Feeling” e, claro, “Let It Be”, mesmo que pressionados pelo prazo de duas semanas que tinham para entregar o disco.
Já próximos ao fim dos Beatles, a banda já estava mais do que acostumada a trabalhar em conjunto, o que tornam os registros ainda mais expressivos. Pelas lentes de Lindsay-Hogg, o processo criativo se destaca por parecer uma dinâmica muito mais individual do que conjunta: cada músico escrevia e planejava as próprias canções de maneira isolada, e assim se entendiam e davam vida à sua música.
É igualmente intrigante sentir a linha tênue que dividia a alegria e o conflito entre os Beatles no estúdio. Ao mesmo tempo que muitos trechos descontraídos se destacam, como a valsa entre John e Yoko Ono nos ensaios de “I Me Mine” ou a animação da filha de Paul, Heather McCartney, durante as gravações, alguns desentendimentos entre os integrantes também roubam a cena. Em determinado trecho, Paul e George têm uma conversa mais dura sobre a finalização de uma canção, mostrando como o clima era frágil na maior parte do tempo.
“Let It Be” é um registro incompleto dos Beatles
Na visão de Michael Lindsay-Hogg, “Let It Be” retrata uma versão dos Beatles completamente diferente da que a sua geração se acostumou a ver, ouvir e consumir. Os artistas que o cineasta encontrou durante as gravações não escondiam mais as desavenças que tinham entre si, e tampouco pareciam ter o mesmo impulso que marcou o início avassalador de suas carreiras, muito por conta dos diferentes rumos que cada um havia tomado em suas vidas.
O filme, entretanto, parece minimizar a todo momento os atritos que existiam entre os integrantes — o que, considerando se tratar de uma produção lançada pela própria empresa dos Beatles em uma época de limitações audiovisuais, faz todo o sentido. As escolhas tomadas pelo diretor também parecem refletir as decisões editoriais, já que a obra não segue uma linha narrativa e opta por não apresentar grandes contextos sobre o que as câmeras nos mostram, o que impede de nos aprofundarmos nas histórias que poderiam ter sido contadas.
Nesse sentido, o lançamento de “Get Back” em 2021 prejudica bastante o ineditismo que deveria existir em “Let It Be” para os tempos atuais. Em seu documentário, Peter Jackson se debruçou sobre as mais de 60 horas de material bruto que Lindsay-Hogg filmou para criar um registro mais amplo e revelador das gravações ao longo de quase 8 horas, além de adicionar contexto às imagens e diálogos.
Aqui, somos limitados a somente 90 minutos, e não apenas a maioria deles já foi visto por parte do público, como também temos conhecimento das cenas que foram cortadas pela produção. A saída temporária de George Harrison da banda, por exemplo, sequer chega a ser mencionada, além de não haver qualquer indício visual de quão próxima a banda estava de sua separação.
Sob a ótica dos tempos atuais, “Let It Be” apresenta poucas novidades realmente concretas sobre a banda, além de algumas poucas filmagens inéditas no estúdio que não foram aproveitadas em “Get Back”. Como uma obra isolada, o filme segue tendo grande valor como um relevante registro de uma das fases mais conturbadas e criativas do grupo mais influente da música — o que, por si só, já justifica uma chance ao longa-metragem.
É difícil, porém, desassociar “Let It Be” de “Get Back” na maior parte do tempo. Ainda que foquem em recortes diferentes da mesma época, há mais semelhanças do que diferenças entre ambos os filmes — o que não são problemas nem de Lindsay-Hogg, nem de Peter Jackson, mas sim da forma em que a produção foi reintroduzida ao mundo.
A obra restaurada de Lindsay-Hogg é um intrigante mergulho na criatividade e na dinâmica dos Beatles em um momento único de suas trajetórias. Apesar de ter o seu ineditismo ofuscado pelo lançamento de “Get Back”, um documentário muito mais detalhado e extenso, “Let It Be” não perdeu a relevância de um registro de 1970, principalmente para os espectadores que não assistiram nenhum dos dois filmes. Para aqueles que já conhecem o trabalho de Peter Jackson, contudo, o filme pode ser um grande dejà vu, mas que não deixa de ter o seu valor histórico.
Nota: 6,5/ 10