Ela fez de novo: em uma volta épica que movimentou todas as estruturas, Beyoncé apresentou, oficialmente, seu sétimo álbum de estúdio com “Renaissance”. O disco, que foi confirmado pela artista como o primeiro ato de uma trilogia, traz 16 faixas que fogem da tendência de viralizar nas redes sociais — apesar de só se falar e se trabalhar conteúdos em cima delas desde o lançamento, que rolou na última sexta-feira (29).
Com o novo projeto, Beyoncé não abre mão das referências de sua trajetória e explora novas experimentações na dosagem certa para um resultado épico em mais uma mega produção. Lançado seis anos após “Lemonade”(2016), conhecido pelo seu tom igualmente político e intimista, “Renaissance” pega carona em uma via diferente e revisita a festividade das discotecas e ballrooms dos anos 1980 e 1990 com o estilo house junto o afrobeats, tecno e, claro, o pop.
A nova era começou com a sexta faixa, “Break My Soul”, uma pedrada como lead single e celebrando o dance music. Hit que já nasceu aclamado, “Break My Soul” alcançou o Top 10 do Hot 100 da Billboard. Já o disco alcançou o primeiro lugar na Apple Music em mais de 100 países e sete faixas de “Renaissance” ocupam, atualmente, o Top 10 na plataforma.
Um conceito complexo e múltiplas referências
Inspirado e conceituado durante a pandemia de Covid-19, em 2021 Beyoncé já havia adiantado para o público alguns spoilers sobre seu novo trabalho durante entrevista para a revista Harper’s Bazaar. “Com todo o isolamento e injustiça que presenciamos no ano passado, acho que estamos todos prontos para fugir, viajar, amar e rir novamente. Sinto um renascimento emergindo e quero participar da criação dessa fuga de todas as maneiras possíveis”, afirmou a artista.
Ainda assim, não é de hoje que Beyoncé explora narrativas recheadas de autorreferências. Em todos os seus discos é possível encontrar sua trajetória pessoal, sua relação familiar, suas visões político-sociais, e menções ao casamento. Em “Lemonade” (2016), essa exposição ficou ainda mais clara após os boatos de traição de Jay-Z, com quem é casada desde 2008.
Em sem novo trabalho com “Renaissance”, isso não seria diferente. Apesar da nova fase profissional e de retomar as pautas raciais em muitas faixas, o lançamento da Queen B segue por um novo caminho através de sua base eletrônica inspirada nas boates — principalmente os ballrooms. Com o house, um gênero fundado em Chicago nos anos 1970 e popularizado por pessoas negras e LGBTQIA+, a artista apresenta seu novo disco a partir de revisitações sem abrir mão da originalidade e aposta em uma sonoridade propositalmente mais sintética do que estamos acostumados a reconhecê-la — seja pelos seus poderosos vocais ou pelos seus riffs característicos. Pensando nisso, o “Renaissance” de Beyoncé escancara faixas com múltiplas camadas e samples que vão de Teena Marie até Donna Summer.
‘Renaissance’: faixa a faixa
Com 1 hora e 02 minutos de duração, o primeiro ato com “Renaissance” não poupa esforços — algo típico da virginiana Beyoncé. Mas diferentemente dos trabalhos anteriores que o perfeccionismo da artista imperava de ponta a ponta, o novo álbum é propositalmente inconstante através de diversas “quebras” que podem ser até desconfortáveis para quem não é íntimo com os gêneros musicais explorados no novo trabalho.
O perfeccionismo típico da texana, entretanto, está nas transições milimetricamente coesas que, por vezes, fazem parecer que o álbum todo é uma música só em suas diversas narrativas e seus altos e baixos.
“I’m That Girl”, que abre o álbum, é um esquenta perfeito para dar o tom certo de início com autoconfiança e ostentação. A faixa é seguida por “Cozy”, mais uma narrativa de amor próprio, mas dessa vez com participação da rapper e ativista TS Madison e menção à clássica briga do elevador entre a sua irmã, Solange Knowles, e Jay-Z, em 2014. “You survived all you been through / Condident, damn, you lethal / Might I suggest you don’t fuck with my ‘sis'” (Você sobreviveu a tudo o que passou / Confiante, você é letal / Posso sugerir que você não brinque com a minha irmã”).
A terceira faixa já é uma das queridinhas dos fãs. “Alien Superstar” é o primeiro aceno claro para a cultura ballroom, originada em Nova York pelas comunidades afro-americana e latina a partir da década de 1960, com seu ápice em 1980. A faixa brinca com elementos de protagonismo e ousadia — não somente na letra — e traz uma sonoridade mais épica com o sample de “I’m too sexy”, do Right Said Fred, como base para uma deliciosa mistura no deep house.
“Alien Superstar” é seguida pela trinca impecável com “Cuff It”, “Energy” e “Break My Soul”. Do sample de “Ooo La La La”, de Teena Marie, passando pelas menções políticas norte-americanas e desembocando na pedrada do lead single, o trio revela o primeiro pico de energia logo na primeira metade do álbum, que tem um pequeno respiro com o que parece o início de um interlúdio em “Church Girl”. A faixa, com potência de single, vai do céu ao inferno (ou vice-versa) e fala sobre a culpa cristã em uma batida potente com groove gospel.
Já a oitava faixa “Plastic Off The Sofa” fecha a primeira metade de “Renaissance” com sensualidade nos vocais de Beyoncé no R&B e a sonoridade volta ao dance com “Virgo’s Groove”, canção mais longa do disco.
Daí por diante, o álbum volta para uma guinada crescente com batidas mais pesadas com a base eletrônica do house. O feat com Grace Jones e Tems, “Move”, traz menção à dança jamaicana em um afrobeat e é seguido pela sensualidade da batida de “Heated” em uma letra mais intimista — que chega a fazer menção a seu tio Jonny. Na décima segunda faixa, “Thique”, Beyoncé faz menção ao Festival Freaknik e ao Miami Bass — que retorna na trilha de outras faixas do álbum.
Para o prazer de muitos fãs, “All Up in Your Mind” traz A.G. Cook, um dos produtores de “Dawn of Chromatica” (2021), de Lady Gaga, e é seguida por “America Has a Problem”, em que o Miami Bass dos anos 1990 chega com força e embala a nostalgia de quem curte o funk carioca da época. “Pure/Honey” faz outro aceno direto para a cultura do ballrooms em uma faixa duas-em-uma antes do grand finale com “Summer Renaissance”, uma homenagem a Donna Summer com o sample “I Feel Love”.
Ao fim do trabalho, “Renaissance” se mostra como uma provocação. Um experimento para se reinventar através das inconsistências em uma arte robusta e audaciosa. Em mais um acerto inquestionável, Beyoncé mostra o real motivo de ter o peso que tem: apesar de encarar uma nova indústria musical desde o seu último lançamento e uma nova geração ocupando os charts, ela renasce junto a faixas potentes, um conceito original e, acima de tudo, com a capacidade intransferível de poder se autorreferenciar.
Nota: 9,5/10