O único ingrediente que faltava a Kendrick Lamar para coroar o seu ano de 2024 era um álbum. O rapper tem sido um dos principais protagonistas da indústria musical nos últimos meses, depois de trocar ataques com Drake em um embate que deu vida a três novas canções — incluindo um dos maiores sucessos do ano, “Not Like Us”. Em um episódio que gerou uma enorme visibilidade para ambos os lados, os versos e os números deram a vitória a Kendrick, o que pareceu dar fim à uma discussão de anos sobre quem estava no topo.
Lançado de surpresa na sexta-feira (22), “GNX” é um reflexo do sucesso de Lamar e de Compton durante os últimos meses. Nas novas músicas, Kendrick substitui a autocrítica de seus últimos trabalhos pela autoafirmação: o rapper jamais soou tão pretensioso e seguro de si, mas se há algo que 2024 nos mostrou, é que ele tem motivos para tal.
A primeira faixa, “Wacced Out Murals”, define o tom que percorre todo o disco: em nenhum momento, Kendrick economiza força em suas rimas para reafirmar o próprio sucesso. Entre os versos, estão alusões a Drake, salves para Snoop Dogg e também uma reflexão sobre o anúncio de seu show no intervalo do Super Bowl LIX, que gerou polêmica com Lil Wayne — que, por ser de Nova Orleans, declarou em suas redes sociais que “doeu muito” não ter sido chamado para o evento.
Em seguida, o ritmo contagiante de “Squabble Up” enfatiza o lado mais comercial de K. Dot, uma faixa que promete se destacar nas paradas musicais com suas batidas e flows dançantes. A canção é um dos vários exemplos ao longo do álbum da sonoridade descontraída que o disco adota, em uma abordagem muito mais direta que os seus antecessores.
O trabalho da produção é formidável, e se estabelece como um dos maiores pontos fortes de “GNX”. Assinadas por nomes como Sounwave, colaborador de longa data de Lamar, e Jack Antonoff, conhecido por trabalhar com cantoras pop como Taylor Swift, Lana Del Rey e Lorde, as batidas permitem a Kendrick explorar seu máximo potencial como rapper, dando ainda mais destaque aos flows e às linhas de impacto.
Além da dupla, o time de produtores também contou com vários outros nomes de peso para o disco. Mustard, responsável por “Not Like Us”, renova a parceria em “Hey Now” e “TV Off”, faixa que se assemelha muito ao single lançado em maio e mantém a mesma energia. O saxofonista Kamasi Washington também se arrisca na produção em “Luther”, a faixa mais melódica do trabalho.
Uma homenagem à costa oeste
A inspiração pelo hip-hop da costa oeste dos Estados Unidos não poderia ser mais clara: “GNX” homenageia as raízes de Kendrick, ao mesmo tempo que abre espaço para as gerações mais novas. Em “Reincarnated”, o rapper rima sobre um sample de 2Pac e incorpora a agressividade de um de seus ídolos em uma das faixas que melhor exemplificam o estilo do disco.
Os acenos à costa oeste, porém, não se limitam somente ao passado. Lamar convidou vários MCs californianos de menor projeção para participarem do álbum: na faixa-título, por exemplo, os versos são divididos entre Hitta J3, YoungThreat e Peysoh, que têm espaço para mostrarem seus talentos ao público. Dody6 também se destaca em “Hey Now”, assim como AzChike em “Peekaboo”, ambas canções que ganham um fôlego a mais com as suas participações.
Ninguém mais, ninguém menos que SZA completa a lista de colaborações do disco, em duas parcerias que estão entre as melhores faixas do trabalho. Em “Luther”, a cantora divide um dueto romântico com Kendrick em uma produção que mistura batidas, violinos e notas de piano. Já em “Gloria”, a artista empresta seus vocais para o refrão, dando um clima angelical para a música que se complementa perfeitamente às rimas de Lamar.
Kendrick Lamar em sua versão mais ambiciosa
O ritmo agressivo de “GNX” também reserva os seus momentos de reflexão. Mais uma vez, Kendrick Lamar esbanja seu talento único em contar histórias, e as usa para construir uma narrativa em torno de sua relação com a arte ao longo de sua carreira por meio de diferentes alegorias — seja cantando sobre o seu passado e suas inspirações, ou por sua busca pela grandeza.
Em “Heart Pt. 6”, o artista volta aos tempos de Top Dawg Entertainment e se dirige aos ex-companheiros de Black Hippy, coletivo em que começou a sua carreira em Compton ao lado de ScHoolboy Q, Jay Rock e Ab-Soul. O cantor revela que o grupo somente não continuou por sua causa e declara o seu desejo de trabalhar como executivo musical em um futuro próximo.
Já em “Reincarnated”, outra das faixas centrais do álbum, o rapper dá a entender que sua arte é “reencarnada” de outros artistas que o antecederam, como John Lee Hooker e Dinah Washington, e canta sob o ponto de vista de décadas passadas até assumir a sua atual forma. A ideia é certamente ambiciosa, mas Kendrick não se preocupa em ser modesto: em “Man At The Garden”, o rapper afirma “merecer tudo” pelos seus sacrifícios ao hip-hop e a Compton, e desafia àqueles que se declaram como os maiores. São afirmações pretensiosas, mas é possível dizer que Lamar as sustenta como ninguém de sua geração.
As obras de Kendrick, afinal, sempre foram grandiosas em mensagem e conteúdo, e “GNX” pode causar estranheza por seguir uma direção oposta em ambos os sentidos. Em certa medida, algumas canções podem soar até mesmo apressadas pela pressão que um ano tão bem-sucedido pode causar para o lançamento de um disco, mesmo para um artista que já demonstrou por vezes a sua cautela com a própria música.
É inevitável pensar se o projeto não seria uma prévia para um lançamento maior, considerando o dom que Lamar tem de ser imprevisível e a contagem regressiva para o seu show no Super Bowl, que acontece em fevereiro. Porém, mesmo com um projeto mais compacto, K. Dot se apresenta em um nível acima de seus contemporâneos.
O disco parece fazer parte de um caminho natural para o cantor. Seus primeiros trabalhos foram guiados pela utopia jovial de mudar o mundo por meio da música — um propósito que rendeu clássicos como “Good Kid, m.A.A.d City” (2012) e “To Pimp A Butterfly” (2015), mas também fez o rapper olhar para si nos demais discos.
Agora como um veterano, Kendrick Lamar almeja se estabelecer como o maior artista de seu tempo — não com projetos ambiciosos, mas mostrando um lado de si que sempre esteve escondido em sua carreira: o rapper de músicas divertidas, descontraídas e livres do peso do mundo. “GNX” é a volta da vitória para celebrar não só um dos anos mais bem-sucedidos de um rapper nos últimos tempos, mas também para a carreira de um artista que não cansa de ousar e surpreender.
Nota: 8,5 / 10