A magia do cinema está, entre tantas possibilidades diferentes que as câmeras oferecem, em proporcionar experiências transformadoras a quem assiste. É mais poderoso ainda, entretanto, quando basta tão pouco para o cinema nos tocar, como uma boa e bem contada história capaz de transformar o nosso olhar. “Os Rejeitados”, indicado ao Oscar de “Melhor Filme”, é um perfeito exemplo de como o simples pode se tornar tão grandioso.
O filme se passa em uma prestigiada escola norte-americana dos anos 70, na qual o professor Paul Hunham (Paul Giamatti) é obrigado a passar as férias de Natal no campus para cuidar dos alunos que não vão viajar. Um deles é Angus Tully (Dominic Sessa), um estudante encrenqueiro e de poucos amigos com quem desenvolve um vínculo inesperado. A cozinheira da escola, Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph), acompanha-os durante o recesso, enquanto tenta lidar com a perda de seu filho na Guerra do Vietnã.
O encontro inusitado de três pessoas de diferentes realidades tem um toque nostálgico que nos remete a obras clássicas como “Sociedade dos Poetas Mortos” (1990), mas Alexander Payne segue um caminho diferente. O diretor calcula a dosagem certa entre comédia e drama para se aprofundar nos sofrimentos silenciosos do cotidiano de maneira divertida e reflexiva.
“Os Rejeitados” é um filme conduzido pelas relações interpessoais, a maneira com as quais elas amadurecem e o impacto que elas provocam nas vidas dos personagens. Payne propõe uma leitura bem-humorada, mas também emocionante sobre frustrações familiares e a solidão, em um dos filmes mais badalados do Oscar.
Durante as próximas semanas, o Tracklist analisa as dez produções indicadas ao Oscar de “Melhor Filme”, com uma resenha crítica sobre cada obra e um panorama sobre as suas chances na maior premiação do cinema do mundial.
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A emoção das relações
Ao longo de sua carreira, Alexander Payne deu vida a várias comédias com uma profundidade dramática. “Sideways: Entre Umas e Outras” (2004) talvez seja o exemplo imediato que venha à cabeça das pessoas pelo equilíbrio encontrado entre o humor e a reflexão. Em “Os Rejeitados”, o diretor não só reutiliza alguns elementos do filme, como reprisa a parceria com Paul Giamatti para mais uma excelente dramédia.
Giamatti vive um professor detestado por seus alunos, assumindo uma personalidade carrancuda enquanto imerge em seus próprios pensamentos — sejam sobre conhecimentos aleatórios sobre as antigas civilizações, ou sobre a sua insatisfação em lecionar para filhos de pais ricos. É a partir desse incômodo que Hunham cria um distanciamento com os estudantes, o que não o permite criar uma relação próxima com nenhum deles em sala de aula.
Tudo muda quando o professor passa a se aproximar de Tully, o único aluno que restou na escola durante o Natal. Angus tinha planos de passar a data com sua mãe, mas ela o avisa que vai viajar com o padrasto e não poderia recebê-lo. O estudante, então, reclusa-se dos demais enquanto procura lidar com a distância e os traumas que o afastaram de sua família.
Entre eles, Mary Lamb, a cozinheira-chefe da escola, tenta seguir em frente com a sua vida enquanto enfrenta o luto de seu filho, morto na Guerra do Vietnã. Isolada pelo distanciamento que sua profissão a coloca dos demais funcionários e estudantes, Lamb vê na dupla a oportunidade de encontrar conforto ao mesmo tempo que lida com a sua perda.
Toda a essência do filme está em seu trio principal, responsável por conduzir a trama e os seus desdobramentos. A sensibilidade com a qual a obra conversa com o espectador diante das várias problemáticas apresentadas por cada personagem nos aproxima ainda mais de suas realidades. Sobretudo, a obra retrata o sentimento que é comum a todos eles: a solidão.
Alexander Payne oferece um olhar aproximado sobre os sofrimentos silenciosos que cada um leva consigo, principalmente aqueles que se reclusam em sua própria companhia. Contudo, “Os Rejeitados” não é somente uma obra sobre sofrer só, mas também sobre como seguir novos rumos: Paul, Angus e Mary transformam as suas vidas a partir de seu encontro, ainda que não saibam
Vale destacar como a escrita sóbria de Payne é importante para nos aproximar de Paul, Angus e Mary. O diretor não comete exageros durante o enredo, e tampouco procura romantizar as questões de cada personagem: “Os Rejeitados” se dedica a contar sobre os encontros transformadores da vida, que apesar de nem sempre durarem, são capazes de nos fazerem enxergar o melhor de nós mesmos. Restam os aprendizados, e principalmente, os sentimentos.
Atuações em destaque
Em uma obra tão marcada pelas relações, as atuações de seus três protagonistas eleva o nível da narrativa e dá ainda mais profundidade aos conflitos que cada um carrega. Tanto na narrativa, quanto em tela, os personagens se completam e encontram refúgio uns nos outros, um alento que se dá pela solidão que cada um sente.
É também por isso que “Os Rejeitados” tem tamanho cuidado em criar uma atmosfera intimista para o público. Como uma história típica dos anos 70, o filme é bastante marcado pela sua ambientação: os seus elementos técnicos, desde o figurino até a fotografia, contribuem para dar à obra um clima bastante imersivo e reconfortante, o que dá ainda mais ênfase ao trabalho do elenco.
A relação entre professor e estudante ganha ainda mais brilho com as atuações fenomenais de Paul Giamatti e Dominic Sessa, uma química que fica evidente ao espectador desde a primeira interação. Giamatti está irretocável no papel de Hunham, incorporando a personalidade zangada e irônica do professor, ao mesmo tempo que traz um humor leve e carismático ao personagem, que se abre cada vez mais sobre as suas próprias vivências no decorrer da trama.
Enquanto Paul já está acostumado a se destacar com papéis semelhantes em sua carreira, Sessa impressiona ainda mais por se destacar tanto em seu primeiro trabalho profissional. Até então, o ator jamais havia participado de um longa-metragem, e a carga dramática de sua atuação como Angus dá um tom de sarcasmo e rebeldia adolescentes que é necessário à dinâmica do trio, sem perder a linha entre a seriedade e a ironia.
Porém, Da’Vine Joy Randolph é quem rouba a cena em grande parte dos trechos do trio. A atriz mergulha na complexidade de sentimentos da personagem de forma intensa, e Mary Lamb comove ao público com os desabafos e as crises causadas pelo luto com a mesma facilidade que nos arranca risadas com o seu humor sincero. Com um trabalho espetacular, Da’Vine se coloca como uma das principais favoritas na corrida ao Oscar de “Melhor Atriz Coadjuvante”.
Alexander Payne tem muita paciência para construir seus personagens, e conforme a relação entre eles se fortalece, também conhecemos mais sobre cada um deles. Aos poucos, o filme nos introduz a novos lados de suas vivências, e a maneira com a qual o elenco brilha em tais momentos é não só comovente, mas até mesmo empolgante.
Por que “Os Rejeitados” pode ganhar um Oscar?
Apesar de não ter a mesma repercussão de outros filmes na corrida pelo Oscar, “Os Rejeitados” certamente está entre as produções mais queridas pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em 2024. A obra foi indicada a cinco categorias ao todo: “Melhor Ator”, “Melhor Atriz Coadjuvante”, “Melhor Roteiro Original”, “Melhor Montagem” e, claro, “Melhor Filme”.
A princípio, “Os Rejeitados” não está entre os maiores concorrentes à categoria de “Melhor Filme”, ainda que possa surpreender a todos com uma vitória inesperada no Oscar. Entretanto, o filme certamente estará entre os principais vencedores da premiação devido às atuações de seus protagonistas.
Da’Vine Joy Randolph é a grande favorita à categoria de “Melhor Atriz Coadjuvante”, depois de ter ganho a mesma categoria nas demais premiações da temporada, como o Globo de Ouro, o Critics’ Choice Awards, o BAFTA e o SAG. Em todos os esquemas de votação, a atriz foi destaque, e certamente deve ganhar o prêmio na maior noite do cinema.
Indicado a “Melhor Ator”, Paul Giamatti também tem chances consideráveis de ser eleito vencedor. Apesar de Cillian Murphy ter se sobressaído na maioria das demais premiações por seu trabalho em “Oppenheimer”, o ator de “Os Rejeitados” venceu a mesma categoria no Critics’ Choice Awards em uma disputa direta com o irlandês, além do Globo de Ouro por “Melhor Ator em Comédia ou Musical”. Ainda que não seja o principal favorito, os votos podem se dividir e dar a vitória a Giamatti.
Quanto às demais categorias, as probabilidades são remotas para o filme. Os roteiros de “Anatomia de uma Queda” e “Vidas Passadas” devem estar entre os favoritos da Academia em 2024, enquanto o prêmio de “Melhor Montagem” tem grandes chances de terminar com “Oppenheimer”.
“Os Rejeitados”, porém, não deixa de ser um dos grandes destaques da premiação, principalmente levando em conta a simplicidade com a qual o filme foi produzido. A obra de Alexander Payne nos relembra o poder com o qual histórias bem escritas podem nos comover e nos confortar, e também nos faz enxergar e ter empatia pela beleza que pode existir em histórias tão cotidianas, mas que, tão envoltos em si mesmos, despercebemos.