O apocalipse não é uma história nova na televisão. Milhares de filmes e séries sobre pandemias já foram escritos, gravados e premiados, mas poucos de fato são lembrados pelo público. Ao recontar uma narrativa contada várias vezes, é preciso fazê-la de outras formas para se diferenciar: há diretores que optam pela ação, outros que exploram o terror; “The Last of Us” o faz pelo trauma.
A jornada de Joel e Ellie em meio aos escombros da sociedade começa como uma trama qualquer de sobrevivência, mas amadurece conforme os personagens se aproximam não somente de si, mas de suas próprias angústias. As relações se tornam mais profundas, as motivações são mais complexas e, por consequência, as decisões também.
O trauma é o principal motor da narrativa, e também é o que molda a relação entre ambos: um pai que perdeu a filha em seus braços e uma garota abandonada em um mundo solitário, unidos pelo medo que compartilham de terminarem sozinhos. A série se sustenta na conexão entre os protagonistas para nos cativar e nos emocionar, e com uma química brilhante, Pedro Pascal e Bella Ramsey estrelam aquela que promete ser uma das melhores e mais sensíveis produções do ano.
“The Last of Us” é um verdadeiro ensaio em tela sobre as relações humanas e os seus limites. Em um mundo devastado pela desumanidade, seja dos monstros ou das pessoas, Joel e Ellie atravessam os seus piores pesadelos em uma história na qual o apocalipse se torna um mero coadjuvante: a sensibilidade é o grande diferencial.
Uma adaptação impecável
Desenvolvido pela Naughty Dog para os consoles PlayStation, “The Last of Us” nasceu em 2013 como um jogo diferente dos demais. A história do game se destacou justamente pela forma com a qual é contada: de maneira quase cinematográfica, a franquia apresentou Joel e Ellie ao mundo e conquistou milhares de fãs, tornando-se uma das mais aclamadas de todos os tempos.
O jogo se passa em um mundo pós-apocalíptico, 20 anos após o início da pandemia do fungo Cordyceps. A série acompanha Joel Miller, um homem de meia-idade que sobreviveu sozinho por anos depois da morte de sua filha, Sarah, no início do surto. É confiado a ele a missão de escoltar Ellie Williams, uma garota de 14 anos que desconhece a sociedade antes da pandemia, à facção dos Vagalumes, sem maiores explicações. Ellie, na verdade, é naturalmente imune ao Cordyceps, e é considerada a grande esperança para a criação de uma cura para o fungo.
O criador do jogo, Neil Druckmann, enxergou a possibilidade de levar a narrativa para a televisão ao lado de Craig Mazin, diretor premiado por seu trabalho em “Chernobyl”. Mesmo contra a dificuldade histórica de se produzir adaptações dos videogames, a HBO superou as expectativas e reimaginou o enredo para a série de maneira impecável, expandindo as possibilidades que eram restritas aos games sem perder a essência que consagrou a obra original.
Na verdade, a série é uma adaptação tão boa que chega a se desassociar dos jogos. O formato permite aos escritores seguir novas direções ao longo da trama, aprofundando-se em arcos inéditos e reexplorando a dinâmica entre os personagens. Não só os diálogos são mais tocantes e agregam mais ao desenvolvimento da narrativa, como simples trechos dos games viram episódios inteiros.
O romance entre Bill e Frank, por exemplo, é contado em segundos dentro do jogo; na série, o casal protagoniza um dos melhores momentos da temporada, com um episódio inteiro dedicado à sua história. Os irmãos Henry e Sam também recebem uma atenção especial do roteiro, com uma profundidade ainda maior na relação entre ambos e uma contextualização sobre o passado da dupla.
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Para enriquecer a narrativa, Druckmann e Mazin mergulham no passado dos protagonistas de forma inédita. As relações entre Joel e Sarah e entre Ellie e sua melhor amiga, Riley, são muito melhor contadas na série, assim como a mãe de Ellie, Anna, é apresentada pela primeira vez. São vários os trechos em que os produtores expandem o universo de “The Last of Us”, seja a partir de passagens inéditas, como os antecedentes da pandemia e os conflitos entre grupos, ou simplesmente se aprofundar em histórias já conhecidas.
A série segue um ritmo particular para cada momento. Não há pressa em contar a história: o roteiro se aproveita de cada segundo para envolver os espectadores ao máximo, voltando seu foco aos diálogos e aos personagens para tornar as suas reviravoltas ainda mais dramáticas. Os altos e baixos de Joel e Ellie são muito mais intensos aos olhos do público, graças à maneira com a qual a obra escolhe caminhar.
“The Last of Us”, inclusive, sabe aproveitar bem os riscos aos seus protagonistas. Os infectados estrelam alguns momentos de grande tensão ao longo da temporada, representando toda a sua ameaça em cenas brutais e cuidadosamente produzidas. Porém, o Cordyceps parece um perigo menos constante do que deveria ser em um mundo pós-pandêmico.
É notável a falta que os infectados fazem durante boa parte da história. Em meio a saltos temporais e sequências menos movimentadas, a série abandona a ameaça dos estaladores e dos corredores com o tempo para se concentrar em outros arcos — o que está longe de ser um erro, mas parece esvaziar o perigo que os primeiros episódios nos apresentam e nos fazem temer.
Mas, como dissemos, o apocalipse é um mero coadjuvante. Trata-se de uma obra sobre pessoas e as suas relações, e “The Last of Us” não hesita em abrir mão dos conflitos para se dedicar aos traumas e inseguranças que movem Joel, Ellie e todos os demais. A essência da série está na construção dos personagens e no amadurecimento dos diálogos, o que é feito de forma espetacular.
Pedro Pascal e Bella Ramsey: os verdadeiros protagonistas de “The Last of Us”
Os momentos-chave da relação entre ambos é o que pautam os episódios de “The Last of Us”. A produção não anda em uma linha reta e contínua, mas dá destaque aos desvios que marcam a aproximação entre Joel e Ellie, seja pelos perigos que enfrentam juntos, os diálogos profundos que compartilham e as feridas que aos poucos se abrem durante a jornada. O desenvolvimento da dupla é conduzido com enorme cuidado pelo roteiro, sem cometer excessos ou tropeços.
Entretanto, o texto da série ganha uma comoção ainda maior graças à atuação de suas principais estrelas. Pedro Pascal e Bella Ramsey são os dois grandes destaques da temporada, e são responsáveis por fomentar toda a intensidade e a sensibilidade que a relação entre Joel e Ellie carrega com os melhores trabalhos de suas carreiras até aqui.
Pedro Pascal alterna entre as diferentes faces de Joel com enorme naturalidade, mostrando as suas faces mais vulneráveis e mais violentas. O ator acompanha a evolução do personagem à flor da pele, incorporando os medos que se escondem atrás da sua personalidade franzina até o momento em que o personagem se liberta de seu passado. Suas aflições e seus alívios não precisam ser ditos em palavras, mas somente pelo olhar, pelas lágrimas e pelas feições.
De mesmo modo, Bella Ramsey mostrou ao mundo que é a pessoa perfeita para interpretar Ellie. A atriz leva consigo a personalidade dura de uma garota que cresceu sozinha em meio ao apocalipse, e consegue tornar a protagonista ainda mais cativante. As teimosias, as descontrações e a inquietação ajudam a moldar a inocência juvenil da personagem, que aos poucos se desfaz conforme é necessário e à medida que ambos enfrentam seus contratempos.
A dinâmica que Pedro e Bella compartilham é o coração de “The Last of Us”. Os melhores momentos da série são aqueles em que podemos desfrutar a dupla em tela, entre os resmungos, preocupações e conflitos em que contracenam. Toda a emoção e a intensidade que os personagens transmitem são consequências de duas atuações dignas de Emmy.
O próximo sucesso global da HBO
Em sua primeira temporada, “The Last of Us” apresenta ao mundo o poder que sua história tem de comover, envolver e encantar o público. Oferecendo uma perspectiva diferente para os clichês pós-apocalípticos, a série desenvolve uma narrativa simples que revela sua complexidade nos desvios do percurso. Uma simples relação entre um homem de meia-idade e uma menina consegue dizer muito sobre nossas próprias relações, com um tempero dramático irresistível às premiações e ao público.
Ao mesmo tempo em que Neil Druckmann e Craig Mazin conseguem criar um mundo reconfortantemente familiar aos fãs dos jogos, a produção também convida os demais espectadores a acompanharem a jornada de Joel e Ellie, que não demora muito para cativar novos fãs. Quando parecia uma tarefa impossível, a HBO consegue aprimorar a história, conter os excessos e desenvolver a trama de maneira sóbria, mas não menos impactante.
Curiosamente, a série melhora conforme explora o que é inédito em relação à obra original, ainda que seja incrível assistir cenas, diálogos e personagens serem adaptados com tamanho cuidado e perfeição para a televisão. O formato dá enorme liberdade aos diretores para se aprofundarem em detalhes importantes da história, e também deixa um grande espaço para introduzir novos arcos e aproveitar melhor o universo ao seu redor nas próximas temporadas.
“The Last of Us” é recompensada pela cautela que tem em desenvolver sua própria história. A trama de Joel e Ellie não poderia ser contada com pressa ou exageros, mas apenas com a devida atenção aos detalhes e às relações que torna a série única. Uma adaptação tão difícil não poderia estar em mãos melhores, um perfeccionismo que consagra a produção como o próximo sucesso global da televisão nos próximos anos.
9 / 10