Mesmo depois de se tornar um astro global, Bad Bunny jamais deixou de cantar sobre o Porto Rico. A ilha em que o artista nasceu e cresceu é conhecida não só por ser um dos berços mundiais do reggaeton, mas também por ser o palco de disputas políticas e territoriais ao longo de séculos de história, o que impactou diretamente na formação cultural de seu povo. Em meio aos vários hits e discos de sucesso de sua carreira, Benito traz consigo os ritmos que nasceram em sua terra natal a partir desse movimento.
Em “Debí Tirar Más Fotos”, seu sexto álbum de estúdio que foi lançado no último domingo (5), o Porto Rico não somente volta a inspirar a sua sonoridade, mas desta vez também é o tema central da obra. As novas faixas retratam as muitas influências que formam a música porto-riquenha, combinando os seus ritmos mais tradicionais com as produções modernas que são uma de suas marcas registradas.
O disco, porém, não é somente uma mera celebração às suas origens. Em seu novo trabalho, Bad Bunny faz de sua música um instrumento de resistência diante das tentativas de apagamento cultural pela qual o Porto Rico passou historicamente, e ao mesmo tempo que festeja, sofre e desabafa nas novas canções, ressalta a importância de saber de onde se vem.
Para Bad Bunny, não há nada como voltar pra casa
Os últimos anos da carreira de Bad Bunny não foram nada menos do que estelares para si. O lançamento de “Un Verano Sin Ti” (2022) marcou uma virada de chave para a sua carreira: o disco se tornou um dos trabalhos latinos mais populares de todos os tempos, batendo recordes de streams e conquistando uma indicação ao Grammy de “Álbum do Ano”. Para além dos números, o disco solidificou o sucesso global do cantor mesmo em mercados menos ligados ao reggaeton, como o norte-americano e o europeu.
Os holofotes nunca haviam brilhado tão fortes sobre si, sua música e sua vida pessoal — especialmente após engatar um relacionamento com a modelo Kendall Jenner. No ano seguinte, o trap de “Nadie Sabe Lo Que Va A Pasar Mañaña” (2023) reforçou a sua posição como um dos maiores astros da música internacional. Em músicas que dialogam sobre os luxos, os agitos e os excessos de uma vida de celebridade, Benito mergulha no universo midiático em que se inseriu para reafirmar o seu sucesso.
Diante de tamanho alvoroço em sua vida pública, o lançamento de um trabalho biográfico como “Debí Tirar Más Fotos” pareceu fazer parte de um rumo natural para o artista. Ao invés de dobrar a aposta em sua fama, Bad Bunny prefere seguir o caminho de volta para casa. O artista, então, rememora às suas lembranças mais velhas através de um registro banal, mas de enorme importância para a preservação da memória: as fotos.
Desde uma capa incrivelmente familiar à qualquer pessoa latina até as composições, o cantor recorre à saudade de casa para basear as novas músicas. A nostalgia é um elemento essencial para compreender o álbum: na faixa-título “DTMF”, o cantor lamenta não ter tirado tantas fotos de San Juan e das pessoas que fizeram parte de sua juventude. Como se na tentativa de reconstruir o lugar em que cresceu em sua memória, Benito se dedica a festejar as cores do Porto Rico em suas novas músicas.
As homenagens começam em “Nueyavol”, música que dá início à audição e faz referência ao clássico “Un Verano En Nueva York”, uma das salsas mais famosas do Porto Rico lançada nos anos 70. As batidas de dembow rapidamente envolvem o público ao ar tropical do trabalho — uma brisa que desemboca no reggaeton de “Voy A Llevarte Pa PR”, na qual o cantor convida seu par a visitar sua terra.
Nas faixas seguintes, porém, o sentimento é de como se todos também fôssemos levados ao Porto Rico. Em “Baile Inolvidable”, Benito conduz o ouvinte em uma salsa de seis minutos, ao mesmo tempo em que lamenta um desencontro amoroso em versos tão românticos quanto bonitos. A música impressiona não apenas pela versatilidade do cantor, mas pela sua ousadia em reinventar a sua sonoridade.
A união entre o tradicional e o moderno
Um dos pontos mais interessantes do álbum é a maneira com a qual Bad Bunny é capaz de adaptar produções modernas ao clima caribenho e nostálgico do disco. Faixas como “Weltita” e “Pitorro de Coco”, por exemplo, não estão muito distantes de alguns de seus grandes hits, mas são invadidas pela atmosfera tropical que é característica da música porto-riquenha. De mesmo modo, o artista canta sobre batidas que soam bastante contemporâneas, mas remetem ao house e ao reggaeton dos anos 90 — como é o caso do single “El Clúb” e da ótima “EOO”.
É louvável que, no auge de seu sucesso, o artista aproveite de seu alcance global para popularizar gêneros tipicamente porto-riquenhos, como a salsa, a plena e a bomba, como uma maneira de resgatar as suas tradições. A escolha das colaborações do álbum também visam dar palco a nomes locais em ascensão, como é o caso de RaiNao, Omar Courtz e Dei V. Já em “Café Con Ron”, Benito se une ao grupo Los Pleneros de la Cresta para formar uma verdadeira roda porto-riquenha.
Segundo o próprio Bad Bunny, todas as canções de salsa tiveram a composição de jovens de 18 a 21 anos da Escola Livre de Música do Porto Rico, em um dos vários exemplos do seu tato com a obra. “A gente pensa: ‘Ah, agora todos os jovens querem fazer reggaeton’. Não, há grandes músicos jovens que estão apenas esperando uma oportunidade”, contou em entrevista ao The New York Times.
Na mesma conversa, Benito fala sobre o legado que gostaria de deixar por meio de sua música, para além de um sucesso puramente comercial. “Não há nada como ser ‘o artista com mais streams’, e daí? Estava pensando nisso e disse: ‘Eu deveria fazer algo que pudesse deixar uma semente’”, declarou. “O propósito é esse: dar oportunidade aos jovens, dar exposição aos músicos mais novos, artistas, dar exposição ao Porto Rico e à minha cultura”.
Nesse sentido, é possível afirmar que “Debí Tirar Más Fotos” planta muitas sementes. Ao se propor a contar a história do Porto Rico por meio da música, o cantor ressalta a sua identidade cultural e instiga os ouvintes e outros artistas a fazerem o mesmo. Em um momento no qual a América Latina é retratada de forma negligente pelo mercado do entretenimento, o trabalho de Bad Bunny também é um importante respiro para a música latino-americana e uma prova da importância de uma representatividade legítima na indústria.
Nas novas canções, Benito soa mais consciente do que nunca — tanto de seu lugar na indústria, quanto de suas origens. Em “Lo Que Le Pasó A Hawaii”, uma das composições mais políticas que já escreveu, o cantor usa o exemplo do Havaí para protestar sobre a repressão cultural sofrida frente aos Estados Unidos e alertar sobre o futuro da ilha, diante de uma disputa entre a sua independência ou a sua anexação aos norte-americanos.
De muitos pontos de vista, “Debí Tirar Más Fotos” pode ser considerado o trabalho mais inspirado de Bad Bunny. Não apenas a riqueza de gêneros impressiona durante a audição, mas também a intensidade com a qual Benito é capaz de transmitir seus sentimentos. Em seus momentos mais profundos, o artista expõe a sua versão mais vulnerável: “Turista” e “DTMF”, estão entre as composições mais tristes de sua carreira, e destacam sua facilidade em alternar o tom ao longo do disco.
Quando o artista estufa o peito para cantar em nome do Porto Rico, porém, ele soa igualmente convincente. Benito encerra o disco com uma de suas declarações mais fortes:“Daqui nada me tira, daqui eu não me mudo”, um coro canta em “La Mudanza”, enquanto Bad Bunny promete jamais deixar a sua ilha. É um discurso ousado, mas que retrata muito bem o propósito do artista em celebrar aqueles que vieram antes de si, como uma maneira de fincar o espaço de sua terra natal na música mundial.
No ponto mais alto de sua fama, Bad Bunny encontra a sua versão mais criativa ao voltar para casa. “Debí Tirar Más Fotos” é o resultado de um talento único em atravessar fronteiras musicais, que há muitos anos se traduz nos milhões de streams que o artista acumula com suas canções. O objetivo do disco, entretanto, parece muito maior do que somente gerar números, mas sim preservar a identidade de um povo.
Nota: 9,5 / 10