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Entrevista: Kell Smith fala sobre ‘No Final desse Filme’, saúde mental e mais

Na mesma conversa, a artista revelou que lançará um livro

Kell Smith
Foto: Divulgação

Reconhecida por suas composições carregadas de emoção e mensagens poderosas, Kell Smith dá mais um passo marcante em sua carreira com o single “No Final Desse Filme“. Em um clipe carregado de simbolismo, a artista aborda o autismo e o empoderamento neurodivergente, uma temática que reflete diretamente sua vivência pessoal. A cantora, que recentemente compartilhou seu diagnóstico de autismo, tem usado sua música como uma ferramenta para promover inclusão, representatividade e empatia.

Além de explorar questões relacionadas à neurodivergência, Kell também mantém um compromisso constante com a saúde mental, outro tema recorrente em sua obra. Em entrevista ao Tracklist, ela falou sobre como suas músicas oferecem acolhimento e conscientização em tempos de tantas urgências emocionais. Confira, a seguir, os detalhes dessa conversa.

Em entrevista, Kell Smith fala sobre “No Final desse Filme”, dá spoilers de novos projetos, e mais

O clipe de “No Final Desse Filme” aborda o autismo e o empoderamento neurodivergente. Como essa escolha de temática reflete sua vivência pessoal? E como você enxerga o papel da música na construção de uma sociedade mais inclusiva e empática?

Bom, primeiro, a música carrega o tema neurodivergência e, mais especificamente, o autismo, porque eu sou uma pessoa autista. Então, eu decidi dividir e naturalizar, principalmente, o assunto. Enquanto uma pessoa com deficiência, eu sinto na pele a necessidade da inclusão através do conhecimento, do diálogo, da troca, da representatividade, do acesso, da acessibilidade. Então, eu queria muito já tocar nesse tema.

Fui bastante empoderada pela minha terapeuta, que também me auxiliou nesse processo de fechar o diagnóstico e tal, porque eu já tive acesso ao tema pela primeira vez criança, quando uma médica da saúde da família, uma médica de postinho de saúde, começou a orientar os meus pais para que a gente iniciasse uma investigação diagnóstica, já que ela notava alguns sinais. É claro que existia bem menos acesso à informação e aos tratamentos, e também por ser de família missionária, eu morei em tantos lugares numa vida itinerante que eu não conseguia passar pelo meu processo de diagnóstico e tratamento, até porque por vezes eu morava num lugar um tempo que não era suficiente nem para conseguir agendar uma consulta, sabe? Enfim, o SUS, que é uma bênção para nós, ainda assim tem tantos desafios e nessa falta de acesso, eu acabei passando a maior parte da minha vida sem conseguir me tratar e sem conseguir me oferecer o que eu precisava pra ter uma vida com mais qualidade em todos os sentidos.

Agora, enquanto adulta, quando eu comecei o meu processo terapêutico, eu não vou mentir pra você que eu já tinha ciência, que eu era uma pessoa autista. O que eu não tinha era o laudo. Mas eu já sabia, eu já vivia, eu já estudava, eu já vivenciava. E nesse processo de receber o laudo, muita coisa acontece, você se sente um pouco em luto e, ao mesmo tempo, renascendo daquele luto, muita coisa começa a fazer sentido e muitas questões também te vêm, como: “será que eu sou quem eu sou ou eu sou o que eu me tornei para conseguir ser alguém em sociedade?”.

Essa música foi a oportunidade perfeita, porque é uma música que fala sobre esse processo de se conhecer, de entender o que nos leva a sempre estar nessa pressa focado nos nossos resultados, porque nós somos julgados pelos nossos resultados e não pelos nossos processos. Então, a gente sempre tá buscando esse lugar do validar pra se obter resultado, e isso é tão perigoso pra todo mundo, mas com certeza pra pessoas neurodivergentes, muitíssimo perigoso. E eu pensei: “poxa, chegou o meu momento de dizer a verdade, de ter coragem, lutar pela coragem de ser eu”, que é uma luta que todo mundo vive e que, enquanto pessoa autista e artista, talvez eu tenha vivido com uma intensidade tão grande que eu precisasse nos representar. Essa música fala sobre uma dessas verdades universais. É mais sobre o que nos une do que o que nos separa. É bem importante essa representatividade.

Outro tema que se destaca no seu trabalho é a saúde mental, como em “Com Acento ou Sem”. Em um momento onde essa pauta é tão urgente, de que forma você acredita que sua música pode ajudar a promover a conscientização e acolhimento?

Saúde mental é a minha pauta desde o início, né? Eu venho falando disso nas minhas músicas, na minha obra, desde que vocês me permitiram dividir de maneira mais ampla. E é tão importante porque a música está e acessa onde mais nada está e onde nada mais acessa. A música, na maioria das vezes, é a nossa companhia quando a gente não tem mais nada e ninguém também. Então é tão profundo, sabe? Ela é capaz de nos entreter, de mudar o nosso humor, de nos colocar a pensar, de nos colocar a amar, de nos colocar a sentir do tesão ao reconhecimento do processo de luto. E, sinceramente, é o mais próximo que a gente pode chegar do divino. Como não usar uma ferramenta dessa pra falar sobre nós? E aí, dentro do cuidado com a saúde mental, falando como uma pessoa que foi salva pelo processo terapêutico, eu sinto essa necessidade de dividir porque, talvez, nem todas as pessoas tenham tempo o suficiente para perceberem a importância de verbalizar.

Esse é o ponto que me coloca na urgência de falar sobre isso enquanto artista, porque eu sou a música brasileira, eu represento o meu tempo, eu preciso dizer: “senão eu quem?”. As pessoas sempre dependeram da arte para conseguir entender o que elas sentem, para conseguir representar o que elas sentem e que normalmente elas nem conseguem traduzir. Ela [música] está nos nossos melhores e nossos piores momentos, sabe? Não tem um luto sem música, não tem um casamento sem música, não tem um nascimento sem música, não tem. Então eu pensei: ‘bom, se eu posso estar em todos os lugares, que eu tenha a responsabilidade de refletir o meu tempo’.

E saúde mental é o tema mais atual possível. E por isso eu, sinceramente, vou continuar sendo a tia chata que fala de sentimentos e emoções. Eu falo assim pras pessoas, se eu pudesse definir a minha música em uma frase, eu diria que eu faço músicas reais pra pessoas reais. Sabe? É isso que eu faço.

O clipe de “No Final Desse Filme” tem uma abordagem muito íntima, revisitando memórias da infância. Qual foi o maior desafio emocional ao mergulhar nessas lembranças para construir a narrativa?

Olha, o clipe acontece quase que inteiramente dentro de uma escola que representa muito, porque foi um ambiente que me adoeceu. E lá eu estava para celebrar, sabe? Então, representa essa cura também, esse ressignificar do que a escola representa, porque a escola foi um lugar muitíssimo complicado para mim e, ao mesmo tempo, o lugar mais incrível da minha vida, onde eu pude ter acesso aos livros, conhecer novos mundos. Eu tive professores fantásticos, eu aprendi coisas que até hoje eu fico impactada de saber que aprendi, de saber que sei. Tem uma coisa mágica, principalmente na minha vida com os professores. Eles são tão importantes, eles são tão especiais, sabe?

E foi muito lindo pra mim. E, ao mesmo tempo, um lugar de tanto bullying, um lugar onde aquelas crianças estavam representando aquilo que elas recebiam em casa, e o que elas recebiam em casa era violência, insulto, que elas recebiam em casa era que elas eram o erro quando elas erravam, elas não tinham um lugar seguro. Por isso elas tiraram o lugar seguro de mim, porque tiraram delas. Por isso elas foram violentas comigo de todas as formas, porque foram violentas com elas.

E esse clipe representa também, porque esses adultos que depois estão dançando comigo, representam aquelas crianças da sala que quase me surtaram. Que é nesse lugar de tipo assim ‘eu não quero vencer vocês, eu quero vencer o sistema’, sabe? E eu tô ali dançando com aquelas pessoas, eu tô ali me curando e celebrando num lugar que tanto me adoeceu, e isso é muito importante. Porque enquanto uma criança neurodivergente, nossa, aquele lugar realmente não estava pronto pra me receber. E ainda assim, aquelas professoras entregaram o melhor. E ainda assim, eu vivi coisas incríveis pelas bibliotecas desse país. E ainda assim, eu consegui viver experiências bonitas, apesar de. E hoje, ressignificá-las. Esse clipe, ele representa tudo isso, porque, por vezes, por muitas vezes, a gente esquece do caminho. A gente esquece que passou por tudo isso, que a gente foi uma criança que enfrentou a vontade de não existir. A gente esquece que a gente superou, sabe?

E aí a gente fica se perguntando: “será que a gente é o suficiente?”. Porra, se isso não é o suficiente, o que é, saca? Se agora ser o adulto responsável por essa criança e tratá-la bem não é o suficiente, o que é suficiente, sabe? Essa música é sobre isso.

Você mencionou que a cena final do clipe simboliza a reconexão com sua criança interior. Como foi o processo de traduzir visualmente essa ideia de cura e empoderamento?

Olha, nós tivemos ali dois diretores muito importantes, o Polerito Zanon e o Kenny Kanashiro, que através da referência de “De Repente 30”, a gente queria trazer visualmente esse encontro com a minha versão criança. Foi uma cena muito densa de gravar, porque eu estava sentindo tudo aquilo, eu estava na escola, eu e a minha equipe, né? Me lembro que o meu maquiador disse isso pra mim: “Nossa, Kell, logo eu que tinha tanto medo de circular pelo pátio da escola, tava lá dançando de saia, curtindo, gravando um clipe com você”. Então, foi pra todo mundo um momento muito especial e, por isso, muito profundo, né? Foi uma cena difícil de gravar. E aquela criança que representa a minha criança é a minha filha. Então tem assim uma simbologia gigantesca, sabe? Porque eu também tô dizendo para ela que ela pode sê-la. E dizer isso pra minha filha e quebrar esse ciclo é tão poderoso. Aí você imagina deixar isso eterno, imortal num clipe, sabe? Eu nem acredito que isso foi possível de tão bonito e tão representativo.

E eu tô ali abraçando a minha filha, eu tô ali me abraçando, eu tô abraçando você, eu tô abraçando a mãe, eu tô abraçando a avó, eu tô toda uma comunidade, sabe? Eu tô dizendo que tem um espaço de acolhimento pra nós, e esse espaço somos nós. E, assim, talvez o clipe mais importante da minha carreira até então.

O clipe traz referências claras ao filme “De Repente 30”. Por que esse filme é especial para você, e como ele ajudou a moldar a narrativa que você quis contar?

Bom, é especial porque, como uma noventista, eu fui impactada pelas comédias românticas, por esses filmes com vibe de “Tela Quente” e “Sessão da Tarde“. E, “De repente 30” fez parte da minha vida, como fez parte da vida de tantas pessoas da minha geração. É louco como ele se encaixa perfeitamente com a mensagem da música, porque a protagonista também quer crescer para não lidar com aquele bullying, para não lidar com aquelas questões. E ela cresce e percebe que o fato de ter perdido esse caminho até o crescimento, fez com que ela não reconhecesse as próprias escolhas. Parece mesmo que ela dormiu e acordou com 30 anos. Ou seja, ela perdeu o processo por querer tanto estar no futuro. Ela não conseguiu absorver o presente dela.

Então, ela faz esse retorno paro o passado dela, vive e tem um final feliz. Eu acho que representa muito, porque a história do filme tá muito conectada à história da música e o que eu então queria passar no clipe. Mas também porque tem esse lugar de, poxa, eu, com aquela idade, me conectava com aquela menina que queria crescer. E hoje, com a minha idade, eu me conecto com a menina que quer voltar do início pra refazer esse caminho. Então, esse filme é muito atemporal, sabe? Ele não deve ser subestimado pela leveza, por uma estética que parece nadar no raso, porque não é. Ele tem muito a oferecer dentro dessa visão do que é crescer e se aceitar.

E tem tudo a ver com a mensagem da música. Quando a gente falou sobre essa referência, quando eu troquei com o Polerito, porque a referência veio dele, eu fiquei muito impactada pensando “poxa, como eu não pensei nesse filme se ele é exatamente o filme que representa”. Então eu me reuni com os meus amigos, eu assisti, eu vivi esses momentos nostálgicos e tá aí, sabe? De alguma forma, esse é o caminho. É estar o tempo todo tendo encontros consigo. E se lembrando do processo, porque nós estamos viciados no resultado e perdendo o processo, sem entender que no final desse filme todo mundo vai morrer.

Então tá aí também uma reflexão de um pessoal autista bem literal dizendo: “ei, todo mundo vai morrer, vocês perceberam? Vamos fazer diferente com esse frágil intervalo que é a nossa vida”, que é um frágil intervalo entre nascer e morrer.

A capa do single foi escolhida com a ajuda dos seus fãs, o que reforça a conexão que você tem com eles. Qual é a importância desse vínculo no seu processo criativo e na sua jornada artística?

Tudo, é tudo sobre nós, não é sobre mim. Eu não sou uma pessoa tão interessante assim pra ficar escrevendo sobre mim o tempo todo. É sobre essa minha conexão. O meu público é mais do que o meu público, eles são meus maiores investidores, eles são meus amigos, eles são minha família. Nós temos um grupo da família no WhatsApp. E eu sempre tô lá dividindo daquilo que é meu, que é pessoal, e trazendo da história deles. Nós temos um grupo no WhatsApp apenas pra comunidade neurodivergente, onde nós podemos dividir sobre os nossos desafios. E essa proximidade é o que me inspira.

Então, o que me inspira mesmo são essas pessoas, é com quem eu troco, é receber uma mensagem dizendo: “poxa, eu tinha tanto desistido de mim e aí essa música”; “tava num processo depressivo e as suas músicas; “nossa, Kell ao ouvir essa música me deu uma vontade de viver que eu não tinha”. Esse é meu sucesso, sabe? Essas pessoas, assim, porque eu não vou salvar o mundo, mas essas músicas salvam o mundo de muita gente. E isso, pra mim, é tudo que eu quero fazer. Eles são tudo pra mim. Eles são incríveis. São pessoas reais.

Seus fãs sempre esperam por novidades! Quais são seus próximos projetos ou temas que você tem vontade de explorar na sua carreira? Algum spoiler que possa nos dar?

Vou dar um spoiler, então, já que você falou. Você sabe que os meus filhos criaram uma figurinha pra mim? Que sou eu com uma faixa escrito “Miss Spoiler” [Risos]. Eu sou péssima, eu dou muito spoiler, a equipe de marketing fica louca. E eu sou assim, eu amo contar pras pessoas, pra eles o que tá acontecendo, como eu tô fazendo, qual é o processo, o que eles acham, como eu devo fazer.

Então, o que eles podem esperar de mim é muita música. é que eu possa celebrar, através do meu processo e projetos autorais, aquilo que é nosso, que eu possa celebrar a nossa música e quem veio antes de mim, através dos tributos que eu faço, através das homenagens às minhas grandes referências, que as pessoas possam também se conectar, porque a nossa música é a melhor música do mundo e a gente precisa mesmo agarrá-la e ter orgulho dela.

Eu tô escrevendo um livro também, então fica aí esse spoiler maravilhoso. Eu não sei quando eu vou lançar, mas eu tô completamente apaixonada pelo livro. A história já existe e agora eu tô nesse processo de colocá-la num papel. Tá sendo muito bonito, então tem tanta coisa pra chegar pra vocês, sabe? Tem projetos onde eu tô interpretando, tem projetos onde eu tô interpretando a a minha obra, as minhas músicas autorais. Tem livro, tem tantas outras coisas que eu não posso contar, mas eu adoraria. Tem feat, tem música, tem muita coisa.

Você pode só adiantar pra gente qual seria o tema do livro?

Será que eu posso? [Risos] Olha, eu posso te dar um spoiler mágico, assim, que eu nunca falei pra ninguém, que é… É um livro infantil para adultos.

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