Não é de hoje que ouvimos e gostamos de histórias de terror. Dos clássicos do cinema, como “Pânico”, até a literatura, em “It: A Coisa,” de Stephen King, existe algo nesse material explícito e incrivelmente real que nos desperta uma enorme curiosidade. A partir disso, as produções true crime, como documentários e podcasts, tornaram-se a grande febre dos últimos tempos, gerando o mesmo (ou até mais) engajamento do que as histórias fictícias.
Você pode imaginar que o podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, produzido pelo jornal Folha de S. Paulo e apresentado pelo jornalista Chico Felitti, é um dos maiores sucessos recentes que poderíamos abordar nessa análise. Mas não é a partir desse fenômeno (ou pelo menos, não somente por ele) que podemos entender completamente o quão entusiastas as pessoas são por esse tipo de produção – embora, nesse caso específico, tenha sido algo sem precedentes. Antes dele, várias outras histórias horripilantes – e muito reais – geraram e continuam gerando burburinho na internet e fora dela.
True crime: o que é esse gênero?
Em tradução literal, “true crime” é o gênero de “crime real”. São histórias baseadas em crimes reais com objetivo de contar ao público, de forma não-ficcional (ou, quando ficcional, em doses menores do que uma narrativa mais comum), envolvendo um crime. Em geral, são crimes mais chocantes e que geraram comoção nacional, como o caso de Suzane Von Richthofen, acusada do assassinato dos próprios pais.
True crime na televisão
Se você tem entre 25 e 30 anos, pode ser que lembre do programa “Linha Direta”, da TV Globo, popular no final da década de 90 e início dos anos 2000. Esse programa era totalmente baseado em crimes que aconteciam na sociedade, desde assaltos, sequestros e homicídios. Esse programa foi tão marcante que, se você é uma dessas pessoas que teve a oportunidade de ver isso na televisão, deve lembrar como era aterrorizante e difícil dormir à noite após um novo episódio.
Para além desse tipo de programa (que, em alguns casos, existiam até mesmo votações via telefone para que os espectadores escolhessem o final da história), ainda hoje é possível encontrar produções muito inspiradas nesse tipo de narrativa. Programas como “Balanço Geral” (Record TV), “Brasil Urgente” (Band) e tantos outros espalhados pelo país contam, de forma mais detalhada, esses crimes. E, não obstante, possuem muita audiência diariamente.
O formato desse tipo de produção abre uma ampla discussão sobre a questão moral que o envolve – ou seja, se é certo ou errado consumir esse tipo de programa como entretenimento. Isso não será discutido neste texto. Porém, vale ressaltar que, por algum motivo, as histórias que chocam são exatamente aquelas que mais despertam a curiosidade, o que talvez explique o fato de essas produções audiovisuais ainda existirem.
Por que consumimos e como deveríamos reagir a isso?
O gênero true crime tem um objetivo muito específico: trazer luz para acontecimentos pouco ou mal explicados, e fomentar o debate a partir deles.
Em “A Mulher da Casa Abandonada”, por exemplo, a narrativa se preocupa, a todo momento, em entender os desfechos de uma história sobre trabalho análogo à escravidão, e se esforça para não transformar em algo sobre violência explícita para nós, ouvintes. Não existe para fazer justiça, mas, sim, para debater sobre ela.
Esse é exatamente o ponto onde o foco precisa estar: no nosso sistema (e até mesmo conceito) judiciário, e como ele também é falho em outras partes do mundo para tantas pessoas que sofrem desse mesmo tipo de situação.
Recentemente, a HBO Max lançou o documentário “Pacto Brutal”, que conta, também em detalhes, o assassinato da atriz Daniella Perez, filha da dramaturga Gloria Perez – que, de forma muito corajosa, fala sobre o crime que mudou por completo sua vida nos anos 90. É o tipo de produção que, além da indignação, é até mesmo indigesto em alguns momentos, tamanha a violência dos fatos. É uma história difícil para ser contada, que se tornou um espetáculo aos olhos do público na época. Hoje, se faz necessário explicitar o que é o feminicídio.
Além disso, toda a repercussão do caso gerou uma série de debates sobre leis na época, que era muito mais branda para homicídios qualificados, hoje considerados como crimes hediondos.
Essa mesma dinâmica pode ser entendida a partir do filme “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal” (2019) sobre o serial killer Ted Bundy, estrelado por Zac Efron, e o documentário “Conversando com um serial killer: Ted Bundy” (2019), da Netflix, que traz gravações de entrevistas inéditas. No próximo dia 10 de agosto, a plataforma lançará “Ted Bundy: A confissão final“, que deve encerrar a “saga” de materiais sobre o caso no streaming.
Outras produções do tipo foram ainda mais impactantes. “Caso Evandro“, documentário da Globoplay, ganhou destaque por debater questões envolvendo, principalmente, a violência contra crianças – um tópico que gera ainda mais revolta nas pessoas que acompanham relatos desse tipo. Além desse âmbito, é também debatido sobre a intolerância e preconceito religioso.
Dentre os títulos populares na podosfera, “Praia dos Ossos“, lançado em 2020 e produzido pela Rádio Novelo, gerou burburinho por sua narrativa envolvente e pelos plot twists no julgamento do caso de Ângela Diniz, socialite assassinada pelo namorado, conhecido como Doca Street, na praia famosa de Búzios que dá nome à obra. Esse é o tipo de história que relata, além das “vidas secretas” do acusado e vítima, o feminicídio, assunto tão debatido atualmente.
Nesse quesito, uma das histórias mais emblemáticas é retratada no documentário “Quem Matou Eloá?“, que discorre o trágico assassinato de Eloá Pimentel por seu então namorado, em 2008. Somado ao feminicídio, é discutido o quão espetacularizado foi o caso, noticiado ao vivo pela televisão – as tentativas de negociação da polícia, a cobertura invasiva da imprensa, e até mesmo os telefonemas trocados entre apresentadores de jornais da tarde com o assassino, que, na época, ainda fazia a jovem de refém.
Leia também: Veja lançamentos dos serviços de streaming para agosto de 2022
Por fim, saber diferenciar os objetivos de cada história se faz necessário para que não as transformemos em um espetáculo. Da mesma forma em que quando vemos um acidente na rua, logo identificamos dezenas de olhares curiosos um círculo ao redor, o consumo das produções true crime não podem servir apenas para isso.
Não devem ser como obras expostas em museus, mas, sim, como ponto de partida para a revisão da organização da nossa própria sociedade, que, agora mais do que nunca, está tão ansiosa pela exposição – nas redes sociais, nos veículos de comunicação tradicionais, e em todos os lugares.