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Review: “Donda”, a maior e mais controversa experiência de Kanye West

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Foto: Divulgação

Em duas décadas de carreira, Kanye West construiu um legado intocável como um dos maiores gênios musicais dos últimos anos. Uma voz com enorme talento para rimar e inovar, com a mesma facilidade para criar conflitos. Odiada por muitos, amada por tantos outros, cada um com os motivos mais plausíveis, mas sempre em evidência. “Donda”, seu décimo trabalho de estúdio, marca um dos capítulos mais controversos de sua trajetória recente.

O disco foi lançado como uma homenagem póstuma à sua mãe, uma das principais testemunhas de seu sucesso. Donda West faleceu em 2007, vítima de complicações após uma cirurgia plástica, aos 58 anos de idade, deixando muito cedo o filho que acompanhava de perto em sua jornada. Desde então, o rapper tem seguido um caminho sinuoso em sua carreira, protagonizando algumas das mais famosas controvérsias do século, entre declarações egoicas e atritos com Taylor Swift, Jay-Z, Drake e tantos outros artistas.

Ao longo da última década, Kanye (ou Ye, como tem lutado para ser legalmente chamado) protagonizou várias outras polêmicas que se tornaram muito maiores do que o próprio personagem em que sua figura pública se transformou. O rapper se divorciou de Kim Kardashian depois de um casamento de sete anos, e, na maior de suas ambições, candidatou-se a presidente dos Estados Unidos em 2020, contabilizando 60 mil votos ao todo.

Em meio a tantas desavenças públicas, sequer é possível se imaginar na pele de West em um estúdio, onde seu gênio musical e seu orgulhoso ego entram em conflito. Porém, em seus últimos projetos, o cantor se reencontrou em sua linha criativa ao se aproximar do cristianismo e da música gospel, produzindo trabalhos religiosos que, apesar de não serem tão lembrados pelo público como seus clássicos, supostamente o ajudaram a se reconectar consigo mesmo.

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Foto: Divulgação


Desde o fim das eleições, o rapper se afastou das redes sociais e tem dedicado seus esforços às gravações de seu mais esperado álbum. “Donda” se tornou um discos mais aguardados da história recente — não apenas pelas circunstâncias que o cercam, mas pelas várias audições feitas pelo rapper ao longo das últimas semanas. Três eventos foram realizados em estádios lotados de Atlanta e Chicago para apresentar o álbum aos fãs, com frequentes mudanças nas canções e na ordem da tracklist que fortaleceram a expectativa pelo lançamento.

A terceira audição reacendeu novas polêmicas. Em uma réplica de sua casa erguida no campo do Soldier Field, em Chicago, Kanye ouviu o disco ao lado de DaBaby, que tem sido repreendido por uma série de declarações homofóbicas em seus shows, e Marilyn Manson, acusado por mais de uma dúzia de mulheres por agressão, abuso e assédio sexuais. O que deveria ser um evento rapidamente se tornou em mais uma de suas desastrosas controvérsias.

O rebuliço ao redor das críticas feitas ao rapper ofuscaram qualquer expectativa criada para um trabalho que, desde o início, vinha sendo considerado como uma nova oportunidade para o artista. Mais uma vez, as discussões desviaram a atenção de sua obra — e são muitos os elogios que poderiam ser feitos com facilidade a “Donda”, mas as polêmicas fazem muitos pensarem duas vezes.

Nesse domingo (29), o disco foi ao ar na íntegra e permanece sendo o principal assunto da indústria musical. Hoje, somente Kanye West poderia gerar tamanho alarde para um álbum lançado sem capa, previsão de lançamento e nem mesmo autorização e, ainda assim, movimentar fãs e haters nas redes sociais. Seja esse seu propósito ou não, “Donda” já é a sua maior e mais controversa experiência em sua carreira.


Uma profunda homenagem à Donda West

14 anos após a sua morte, Donda West continua presente na vida de Kanye como uma de suas maiores inspirações e exemplos. “Donda” não é uma homenagem apenas à sua mãe, mas também à figura por trás de sua personalidade.

“Eu sou a mãe do meu filho, o homem que eu descrevo na introdução por ser tão decididamente diferente: meu filho”, declara a própria Donda em um áudio de um de seus discursos universitários, gravado um mês antes de sua morte, na faixa-título. “Eu tive a chance de compartilhar não somente o que ele significa pra mim, mas o que ele significa pra uma geração. Como uma escritora disse, viemos de algum outro lugar: não apenas dos úteros de nossas mães e as sementes de nossos pais, mas de uma longa linha de gerações que vieram antes de nós”.

Como a influência de uma geração, Kanye também se tornou um dos artistas mais perfeccionistas com sua própria vida e seu próprio trabalho, entre tantas facetas que já assumiu em sua trajetória. Não à toa, “Donda” sofreu tantas alterações: o disco é organizado em uma mesma linha narrativa, de forma a tentar concentrar suas 23 músicas em torno do luto por sua mãe e da redenção pessoal que muitos procuram — esteja Kanye versando sobre os tantos que a buscam ou simplesmente pedindo a Deus para guiá-lo, como acontece tantas vezes ao longo do álbum.

Donda West é o fio condutor entre as faixas, destacando-se como uma figura recorrente entre as composições. Por vezes, não só Ye mas também os convidados das canções a homenageiam antes de começarem seus próprios versos, tornando-a presente em cada drama relatado pelo rapper, ainda que fuja do contexto principal na maioria dos casos.


Jay-Z é o primeiro a reverenciá-la em “Jail”, faixa que foi movida para a abertura da obra, em uma das parcerias mais comemoradas dos últimos tempos. Após anos afastados entre si devido a discussões pessoais e desavenças entre suas famílias, a dupla voltou a colaborar e deu origem à uma das melhores músicas do disco, dando início ao trabalho em um ritmo eufórico que parece fazer muito mais sentido em seu começo.

Em seu verso, o nova-iorquino diz estar levando Kanye de volta pra casa, pedindo a ele para “parar com isso do boné vermelho”, em alusão ao seu apoio a Donald Trump nas eleições estadunidenses de 2016. A química entre ambos é suficiente para inflamar o êxtase da canção, fazendo-nos lembrar dos dias de “Watch The Throne” e até mesmo deixando em aberto uma possível continuação para o trabalho. “Hova e Yeezus, como Moisés e Jesus”, na próprias palavras de Jay-Z.

O álbum é repleto de convidados especiais em quase todas as músicas, o que poderia vir a ser um problema para a divisão das participações. Entretanto, todas as colaborações agregam ao clima das canções na medida perfeita, de maneira que Kanye consegue absorver os melhores talentos de cada um em suas faixas sem abrir mão de sua autenticidade. “Moon”, um dos maiores destaques do trabalho, é um exemplo ideal: os vocais de Don Toliver, responsável pelo refrão sentimental, e Kid Cudi, parceiro de longa data de Ye, enriquecem a composição e a transforma em um dos momentos únicos do álbum.


Quatro faixas da tracklist receberam uma segunda parte com novas parcerias — entre elas, a polêmica versão de “Jail” com DaBaby e Marilyn Manson, que acabou sendo lançada à parte. Felizmente, não é preciso ouvir a voz de um homofóbico ou um agressor para se absorver a experiência da obra, como muitos imaginavam que seria após a última audição. Porém, trata-se de uma discussão que sequer deveria estar sendo debatida, por ultrapassar qualquer significado que o rapper pode ter pensado para as parcerias e afetar aos tantos ofendidos e envolvidos em seus atos.

Uma experiência atual e diversa como poucas

O principal acerto das escolhas para a obra, contudo, está no encontro de gerações que a tracklist promove, o que também evidencia a versatilidade de Kanye como produtor para adaptar suas faixas à música de hoje. Por várias vezes, o artista divide o palco com alguns dos mais badalados nomes do rap atual e constrói as canções sobre batidas de trap ou drill, por exemplo, mostrando-se antenado à indústria e em sua versão mais flexível desde “Yeezus”, de 2013.

“Off The Grid” marca um desses momentos, chamando a atenção por sua produção enérgica que ganha ainda mais força com as participações de Playboi Carti e Fivio Foreign. “Pure Souls”, parceria com Roddy Ricch e Shenseea, também se destaca como uma das músicas mais vibrantes do álbum, em que ambos os rappers discutem sobre a fama e o sucesso, um no início de sua carreira e outro com anos de estrada.

Sem contar com Jay-Z, nomes mais experientes também figuram entre as colaborações mais memoráveis do disco. The Weeknd canta um refrão angelical em “Hurricane”, outra das canções mais ouvidas em sua estreia, enquanto Travis Scott protagoniza um curto dueto com Ye em “Praise God”. Jay Electronica, talvez um dos mais longevos deles, também tem uma participação de luxo em “Jesus Lord”, na qual rima em uma das faixas mais importantes e reflexivas da obra.


“Donda” reúne elementos de toda a discografia do rapper, alternando entre os diferentes estilos que Kanye já experimentou em sua carreira. Há momentos que lembram os grandes sucessos de “Graduation” (2007) ou “My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010), ao mesmo tempo que grande parte das faixas parecem ter bebido da mesma fonte que seus trabalhos mais recentes, como “Kids See Ghosts” (2018) ou o gospel de “Jesus Is King” (2019).

Especialmente na segunda metade do álbum, o cantor se aproveita dos coros e das instrumentações para reforçar a mensagem religiosa presente na maioria das composições e em vários dos seus últimos projetos. Ao lado do Sunday Service Choir, o rapper dá vida a alguns dos cantos mais emocionais de seu trabalho, como em “24”, dedicada ao ex-jogador de basquete Kobe Bryant, e em “Lord I Need You”, em que reflete abertamente sobre o seu relacionamento com Kim Kardashian.

O disco se encerra com duas das canções mais belas já gravadas por Kanye. Produzida junto a Tyler, The Creator, “Come To Life” nos revela uma versão transparente do artista, versando sobre seus medos pessoais e sua família sobre um dos instrumentais mais ricos da obra. Já “No Child Left Behind” dá fim aos trabalhos em um órgão que se perpetua enquanto o artista repete enfaticamente sobre os milagres de Deus em sua vida.

Do início ao fim, “Donda” é idealizado como uma experiência ao ouvinte, de maneira a clarear as mensagens por trás das letras e mergulhar em sua atmosfera no decorrer da audição, o que justifica o perfeccionismo do rapper para lançar o disco. Assim como “The Life Of Pablo” (2016), o álbum deve passar por diferentes mudanças nos próximos meses, como alterações em sua tracklist ou a inclusão de novos materiais, até chegar em sua versão final. Contudo, já é possível considerar o trabalho como um dos mais ambiciosos projetos de Kanye em sua carreira, para o bem ou para o mal.


De certa forma, os adiamentos da obra prejudicaram bastante o seu lançamento, uma vez que não só o senso de novidade se esgotou, mas também porque as comparações com as demais audições se tornam inevitáveis. Além disso, há vários momentos do disco que podem ser corrigidos ou melhorados em suas futuras versões, principalmente quanto à sua duração.

Apesar de propor uma experiência quase cinematográfica, “Donda” tem passagens desnecessariamente longas que deveriam ser abreviadas, como é o caso de “God Breathed”, que funciona como um interlúdio e poderia ser encurtada pela metade, e faixas que soam como demos e poderiam ser descartadas, como “Ok Ok”, “Junya” ou “Tell The Vision”. As recentes desavenças com Drake e as polêmicas com DaBaby e Marilyn Manson, por exemplo, também se tornaram impossíveis de serem desassociadas ao álbum, o que entra em um conflito direto com as mensagens que as canções procuram transmitir.

A memória de Donda West e os dramas pessoais de Kanye, as duas temáticas centrais do trabalho, estão bem retratadas em suas composições, mas se tornaram questões secundárias em relação ao alvoroço que o cantor gerou. O disco ganhou vida própria pelo mundo como um tópico de debates e controvérsias, um alcance que somente Kanye West poderia atingir para um lançamento. Tenha sido a discórdia proposital ou não, o rapper jamais precisou das polêmicas para ser lembrado como um dos maiores artistas de sua geração: seus feitos sempre o afirmaram por si só, embora as discussões na mídia ressoem mais altas que a sua música (e com motivos).

“Donda” nos faz recordar de alguns dos mais brilhantes momentos de sua carreira, escancarando as tensões e as reflexões por trás de sua arranhada imagem pública. Trata-se de uma obra que seguirá sendo debatida nos próximos meses, da mesma maneira que Kanye West seguirá sendo contestado pelo mundo. É uma pena que tenha sido lançado em algumas das piores circunstâncias, mas o álbum permanece como uma poderosa e autêntica expressão de um dos grandes gênios de seu tempo — e que, hoje, poderia ser uma unanimidade, mas escolheu o caminho contrário.

8 / 10

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