Com mais de uma década como cantora e compositora da cena MPB brasileira, a pandemia fez a cantora Céu se lançar nas interpretações com “Um Gosto de Sol”. Seu novo álbum, lançado dia 12, veio ao mundo como uma resposta ao desânimo e falta de inspirações ao ficar dentro de casa em 2020. É a primeira vez que Céu se joga como intérprete de um álbum completo, que nos surpreende com versões de músicas como “Deixa Acontecer”, do Grupo Revelação. Além disso, nos mostra seu gosto por outras canções e artistas que não esperaríamos.
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É um disco que traz um pouco de tudo, com participações desde Emicida e Russo Passapusso, do Baiana System, até Andreas Kisser, guitarrista do Sepultura, no violão de 7 cordas. Ele traz ainda na produção o marido de Céu, Pupillo, ex-Nação Zumbi, e uma seleta de músicas diversas que passam até pelo samba de décadas passadas. O que era um momento de improdutividade, virou familiar e uma obra de interpretações completa.
Nesta terça, 16, a cantora realizou com mediação de Marcus Preto (que também foi seu parceiro na construção do álbum) uma coletiva de imprensa, na qual respondeu perguntas sobre o novo projeto, parcerias, relação com arte e muito mais. O Tracklist esteve por lá e tivemos algumas de nossas perguntas respondidas. Confira abaixo o que rolou! (nossas perguntas estão indicadas)
Como Céu e Pupilo inicialmente descrevem o álbum
“Ela queria que o disco fosse baseado em violão. O violão é algo que remetia muito à memória afetiva dela, infância e o pai, todas essas coisas. O álbum tratava disso, né. Só que eles queriam alguma coisa diferente. De repente, o Pupilo viu o Andreas Kisser tocando choro junto com o filho no Instagram… e aí, enfim…“, diz Marcus Preto alguns minutos antes de passar a palavra à Céu.
“O pagode eu e Pupillo fingíamos que não era com a gente. Nada contra, mas a gente achava que não ia dar certo. E aí ela insistiu de novo e a gente fingiu que estava ali fazendo outra coisa. Aí ela pedia de novo e chegou um momento que foi. E ficou bom, deu certo. Ou seja: ela estava certa o tempo todo,” diz ele sobre a adição de “Deixa Acontecer” do Revelação, que conta com parceria do Emicida.
Segundo Céu, já existia a vontade de ser intérprete em um álbum, a pandemia apenas facilitou a chegada.
“A história é a seguinte: eu já tinha esse desejo, de algum dia fazer um álbum como intérprete, essa intérprete convive comigo desde sempre, afinal, eu entrei na música pensando ser Céu intérprete. Me descobri compositora, segui mais por esse viés, mas nunca larguei a intérprete totalmente. Quase todos os meus discos tem uma versão como intérprete, né.
A música sempre foi o lugar de maior segurança pra mim. É o lugar que eu me sinto segura. É a linguagem que me acalma, que me aquece. Então nesse momento de violência, de óbito, de luto sem precedentes que todos nós vivemos, eu acabei recorrendo ao meu lugar de segurança e desejo de escutar som e de me manter ativa e aquecida. E assim esse projeto se deu.
Foi um desejo de fazer isso comigo e de fazer com o Pupillo, o meu companheiro, dele produzir, dele também pensar. Da gente começar a focar numa coisa que nos faz bem e também às pessoas em volta. Começar a fazer como se fosse uma roda, uma fogueirinha. Sabe quando alguém acende uma fogueira e a gente fica num momento tempestuoso, com aquele foguinho, com aquela chama… Então assim se deu. A gente teve esse projeto como um farol de alegria e de fazer coisa que a gente ama.
Acho que também o desejo de trazer as camadas diversas pra quem eu me tornei hoje como artista. Não só aquela Céu que as pessoas conhecem, que fala das referências quando lança discos autorais. Eu sei que ninguém sabia que eu gostava por exemplo da Fiona Apple ou que eu gostava de pagode. Eu queria trazer algumas camadas e contar um pouco mais, me aproximar ainda mais de quem já acompanha e de quem também tá chegando agora. Acho que foi isso!”
Confira a entrevista na íntegra
Como foi o processo de produção de disco de intérprete sem canções autorais e quais são suas referências musicais atuais?
Foi um processo esperançoso para mim. Como é um projeto que me aquece, que eu recorro aos meus ídolos, é como se eu tivesse invertido o papel. No sentido que eu me mostrei fã. Então eu fiz um disco de fã dos meus ídolos e isso foi muito divertido.
Mas também um pouco difícil, porque é difícil mexer nessas obras. Também entender até que ponto a minha textura vocal, a minha voz funciona nas canções… Então tiveram vários desafios, como trazer unidade pra um trabalho com um aspecto tão amplo. Tiveram várias dificuldades, mas acho que perto do que a gente andou vendo no mundo, zero dificuldade. A gente foi seguindo, assim, mais uma vez como um farol esperançoso. Então tem uma coisa boa por trás da feitura de um modo geral do disco.
E as minhas referências hoje… não sei. Eu não estou ouvindo muita coisa agora de novo. É engraçado, eu comentei isso com algum jornalista que quando a gente volta a trabalhar, e agora a gente tá voltando, aos poucos mas estamos já voltando, parece que eu ouço menos música. Na pandemia eu ouvi muita música. Agora eu estou ouvindo de novo menos. Mas eu estou bem apaixonada por esse disco de bolero de um cara chamado Frank Reyes que é bem calmo. Me faz muito bem escutar e eu gosto muito de bolero.
Alguma dessas canções do disco foi mais difícil pra arranjar e gravar? Você se apropriou com tanta naturalidade de tantas influências no disco que parece uma cantora, uma intérprete veterana. Você se sente assim ou nem tem tempo pra pensar nessas coisas?
Eu me sinto veterana. Eu sempre cantei, eu falo que é meu primeiro disco de intérprete mas de fato eu tive a oportunidade de cantar em alguns outros momentos, tipo o show do Catch a Fire, o show do Jorge Ben. Eu sempre exercitei. Então de alguma forma eu me sinto intérprete. Agora de fato me sinto veterana. Mas dedicar um disco todo à essa faceta minha foi inédito, tive dificuldades, mas acho que em nenhum momento eu deixei de me sentir veterana. Não me senti iniciante em nenhum momento, acho que já tem alguns anos que não me sinto assim.
Eu acho que das faixas mais emocionantes no sentido de “como a gente vai fazer esse negócio? O bicho vai pegar!” foi a que leva o nome do disco. Pela grandiosidade da canção, pelo enrosco pro Andreas também, que acaba sendo muito protagonista de uma certa maneira nessa canção, já que tá tudo ali entregue no violão. Essa canção foi bem densa. O momento de gravar, no estúdio, é o momento que mais me arrepia. E “Um Gosto de Sol” pela força, acho que o Pupillo também trouxe esse sotaque… Teve a coisa linda de estúdio que foi linda e complexa. Pra mim, no momento, foi a faixa mais complexa. Mas mais maravilhosa também. Uma das que eu mais gosto.
O álbum foi resultado da pandemia na sua vida. Que impacto ela teve? Como é gravar o álbum com o marido e com o seu pai?
O impacto da pandemia foi gigantesco, muitos aprendizados… Acho que foi uma mega lupa pro nosso micro mundo pessoal de cada um e ao mesmo tempo uma mega lupa pro coletivo, pra fora e pra dentro. Então a gente ficou muito de frente com as nossas escolhas, com as nossas vivências, com tudo que a gente andou, com tudo que a gente não andou… com tudo que a gente tá devendo ainda. Eu acho que a pandemia foi uma “lupona” mesmo.
Muitas coisas a se rever, a pensar, a refletir… Eu sou mãe de duas crianças, então a pandemia trouxe muito essa responsabilidade sobre um futuro. Foi um impacto muito grande pra mim. De reflexão. Não acho ainda que existem respostas, mas acho que abriram-se mais portas pra cada vez mais buscar outros caminhos.
Comigo particularmente aconteceram várias coisas interessantes. Eu acabei sendo chamada pra fazer um outro ofício que eu nunca tinha feito e que foi muito louco. Acho que isso acabou agregando muito do meu comportamento como artista na música, que foi apresentar um programa. Fui apresentadora de um programa da LAB, dos meus amigos da LAB Fantasma Leandro e Fióti, beijo pro meu amigo Fióti. Ele me chamou pra fazer isso, eu, uma pessoa nascida tímida, toda encalacrada, vou ali de frente falar com um monte de gente, aprender a trocar ideia… Então isso mudou muito meu jeito.
Acho que teve o fato de eu também tentar trazer o público mais perto… fiquei fazendo conteúdos semanais no Youtube. Foi uma maneira de me sentir próxima de quem já tá comigo e com isso eu aprendi muito também.
Daí foram as coisas pessoais, né. Eu fiquei 9 meses com a minha sogra aqui em casa, isso foi muito forte também. Beijo Maria Isabel, te amo! Um parto com a sogra… então assim, ficar na sua casa, você cuidar de tudo e também não pirar…
Acho que é isso, e a música entra sempre pra mim nesse lugar de algo que me deixa bem. Então sempre recorrendo à música, ouvindo som, como apresentadora e fazendo aula. Acho que foi isso que eu tentei focar. Li muitas coisas pra também me inspirar, porque pesou pra todo mundo. Eu não me senti nem um pouco inspirada para escrever coisas… tava só assimilando e tentando entender.
Escrevi uma música na verdade, que foi justamente no dia que eu vi uma pessoa em situação de rua que fizeram uma demarcação em volta dela por conta da COVID. Porque essa pessoa não podia transmitir pra outra estando em situação de rua, então fizeram essa demarcação pra dar alimento à essa pessoa. Foi a única canção que eu me senti inspirada à fazer. Difícil, né.
Eu tentei olhar para os ganhos. Porque, foram ganhos, né? Eu tenho duas crianças e pude cuidar de perto do meu filho que era um bebê e hoje já está grande, com 3 anos quase 4; e a minha filha que está desenvolvendo, virando uma mulher e eu pude estar perto deles, foi muito bom.
Trabalhar com marido e pai é treta, né? Não sei porque eu faço essas coisas. Mas na verdade eu sei. Eu faço porque a gente tem uma afinidade musical incrível e realmente, eu penso e eles já tão entendendo. Eu admiro muito o Pupillo. Pra além do nosso relacionamento. O jeito que ele delimita as coisas, resolve… acho ele um baita produtor muito respeitoso com os artistas de modo geral.
Com o meu pai foi a primeira vez que eu trouxe ele pra mais perto e ele sempre costuma dizer que eu tomei as aulas que não me deu de música. Então é muito bom trazer ele de modo real, pra mais perto, e tomar as aulas dele . Acho que esses foram os ganhos dessa história louca que a gente anda passando. Acho que o afeto, o elo…
Ouvi “Feelings” do Morris Albert várias vezes, lembrei da versão original que foi gravada por mais de 300 artistas. Voltei a escutar a versão de NIna Simone no festival de Montreux de 76 e a do Caetano Veloso de 2004. A sua interpretação arrebenta de maneira que avança no tempo. Qual é a sua história com essa canção?
Obrigada primeiro por essas palavras! Me sinto muito agradecida. Essa canção é engraçada, o Marcus Preto sabe bem. Essa eu tive uma certa ressalva em gravar, pelo fato de ser uma canção realmente muito gravada, ela é mundialmente gravada, de Nina Simone à Caetano, passando pelo Offspring. Ela tem uma série de polêmicas em volta… Mas o Marcus Preto e o Pupillo acabaram insistindo muito pra eu gravar.
Depois olhando eu acho que entendo muito mais agora. Acho que eles conhecem uma outra camada minha que não são todas pessoas que conhecem, que é essa coisa meio rasgada, meio “cafonona”, que trago e sou adepta. Que tem um teor quase karaokê assim, sabe? Não sei se essa palavra cabe, mas tem essa coisa fossa, kitsch assim, sabe? E tem a coisa engraçada de ser um brasileiro que fez isso, que fez essa bagunça, essa música que todas pessoas gravaram.
Acho que eles quiseram trazer, me sugeriram, porque afinal de contas eu estou convivendo aqui comigo há 41 anos, então é muito bom esse processo de ter uma pessoa olhando você de fora. Quando eu faço disco autoral, fico muito dentro do meu mundo e nunca tive essa experiência de dividir. E ter o olhar de pessoas que você confia falando de você mesma, vem outras camadas. Então foi muito interessante topar porque eu gosto dessa música. Acho lindíssima.
Tava desconfiada se ia adicionar algo à ela. E eles me impulsionaram, disseram “vamos”. Marcus Preto especialmente. E já tiveram algumas questões pessoais, como festa, aquelas festas que não acabam nunca e o povo “feeelings…”. Mas enfim, ela tinha uma particularidade no meu mundo pessoal, finalmente fizemos e eu gostei muito do resultado.
(Tracklist) Foi uma surpresa ver “Deixa Acontecer” no álbum, li que você é fã de pagode e amei. Se pudesse gravar outro pagode dos anos 90/2000, qual seria?
Sim, é inesperado. Mas é isso, quando os anos 90 aconteceram eu tinha 10 anos. Eu fui a criança que escutava Só Pra Contrariar, que dancei, que me acabei ouvindo Sowetto, Raça Negra… Tava até cantando uma canção do Raça Negra no projeto com o Tropkillaz, que foi sugestão minha, que foi “Me Leva”. Eu gosto. Acho que o pagode tem esse extra romantismo, uma certa sofrência. Do mesmo lugar de “Feelings” e até da Marrom, sabe? Tem essa intensidade da letra de “Pode Esperar” que eu acho bonita, gosto e pode trazer essa camada. Se eu fosse gravar algo, sei lá, “Coração Radiante”… tem várias que eu amo. Mas “Me Leva” eu amo também. Acabei não fazendo a versão oficial com o Tropkillaz, mas quem sabe a gente não lance.
(Tracklist) Ao escutar “Um Gosto de Sol”, sinto uma certa liberdade com as músicas. Acho que junta com a situação atual de que as coisas finalmente estão voltando pro lugar com eventos e até mesmo o sol começando a aparecer pelo sudeste. O lançamento de “Um Gosto de Sol” foi pensado propositalmente para essa volta à normalidade?
Na verdade não foi uma coisa que a gente pensou. Acabou acontecendo, era pra ter saído até um pouquinho antes, mas, claro, uma hora a gente percebeu que isso ia acontecer e foi uma feliz coincidência. De estar ficando quente, as vacinas andando pra frente um pouco mais… as pessoas querem um gosto de sol, é o que se almeja e há a esperança. Isso foi uma coincidência muito feliz. Essa era a vertente que eu estava mirando. Mas finalmente chegar na hora que tá começando a esquentar no sudeste…
Como funcionou o processo de adaptação das músicas? São músicas que fizeram parte de sua formação musical, então foi esse o processo de escolher os novos arranjos, uma nova roupagem? Como foi?
Não foi “eu vou pegar essas músicas e vou dar uma nova roupagem”. Veio mais do lugar “eu vou contar quem é essa pessoa aqui pra além do que vocês já me conhecem”. Acho que foi um pouco mais desse viés. Eu segui mais a parada de ir não pela música, mas pelo artista. Vai ter que ter uma coisa da Rita Lee, vai ter que ter uma música da Marrom… vai ter que ter uma coisa do Gil. Enfim. Foi muito por esse lugar de pesquisas e depois foi afunilando pra dentro da obra de cada artista. Qual canção que teria mais a ver, enfim, que teria o texto que eu queria falar no momento. Foi uma afunilada assim.
Os álbuns podem ser lidas de forma narrativa, contando uma história, ou cada um deles é bastante particular e distanciado dos demais? Como a sequência de seus álbuns pode ser observada e qual caminho que “Um Gosto de Sol” aponta?
Eu sempre preciso lançar pra entender melhor. Durante o processo eu fico muito “em si mesmada” ali nas coisas e não consigo entender tanto. Mas quando lança, eu entendo e tava fazendo essa reflexão. Eu acho que quando eu percebi que queria fazer música, eu me encontrei dentro de um lugar com muita dificuldade de gêneros, de caixas… não a toa não me encaixavam em MPB, né? Eu achava que eu fazia MPB, mas os jornalistas falavam que não.
Fui percebendo que foi uma dificuldade que eu fui entendendo. Fui cantando como compositora. Não é tão comum aquele tipo de narrativa, não só narrativa de letra como a narrativa harmônica… Era um jeito de pensar muito diferente. Eu acho que desde sempre eu percebi que tinha uma coisa diferente no meu jeito que eu desejava me expressar musicalmente. Até nas caixinhas que as rádios pedem…
Eu percebia que eu estava falando de uma liberdade que eu estava em busca, mas ainda assim queria que soubessem que tinha uma unidade por trás. Que não era uma liberdade sem contorno nenhum. Eu mesma estava procurando a resposta da minha pergunta, então eu acho que demorei todos esses anos e álbuns pra entender a compositora que sou pra ter segurança nesse lugar de composição pra finalmente depois de vários discos, vários dia a dias de onde eu fiz minhas decisões muito pessoais de sim e de não, continuar essa pessoa no Brasil que tá entendendo o seu lugar. Mas mas consigo me entender muito melhor e finalmente chegar hoje pra contar um pouquinho de um novo capítulo como intérprete.
Acho que foi um caminho natural de eu poder dizer quem eu sou na composição, que essa é a minha linha de frente né, gosto de contar minhas histórias… eu sou desse jeito que meus arranjos são diferentes, eu sou assim… pra finalmente entrar num lugar que é mais fechado, que é intérprete, né? Que é um lugar que você tá a serviço de um artista. E não entrar como uma intérprete eclética. Não era isso que eu queria.
Na verdade eu sou compositora, que tem uma unidade que conduz o meu trabalho, que é eclética, mas sigo a minha linha de jeito de escrever, compor e tal… e que hoje tá cantando. Ficou mais bem explicado pra me sentir mais a vontade de lançar hoje um disco como intérprete 100%.
Sabemos que quando se trata de um álbum mais como intérprete, há muito de dosar entre o toque pessoal e a origem daquela canção. Como é dosar? Podemos virar a música do avesso ou pode fazer tantas outras coisas entre um lugar e outro. O que que você acha que você sente que fez?
Tentei contar a música da minha boca, do meu ponto de vista. Acho que essa é a coisa mais honesta que posso contribuir para uma versão. Trouxe pra dentro do meu universo. E essa foi a parte que talvez foi o maior desafio. A gente achar o repertório e achar o por quê. Foi muito divertido. A gente deu risada com muita coisa, questionamos muitas outras coisas. O que eu tento fazer é manter um lugar honesto. E me questionar. Você tá cantando coisas de todas as ordens e por que você tá trazendo pro seu universo? Esses questionamentos todos foram feitos todos na letra e na música em si, foi muito gostoso. Eu gosto dessa parte.
Vai ter um volume 2?
Eu gostei de fazer isso aí. Acho que vai ter sim. Acho que vai ter 2, 3, 4… sei lá. Até onde me aguentarem eu vou ficar cantando.
Nesse momento em que a gente parece quase ter esquecido o gosto do sol, o que o samba das décadas de 50 à 70 tem de tão essencial pra abrir o disco e sua reconexão com a música?
Talvez o fato que a gente passou uma situação tão sinistra que a gente ficou no lugar de “não é possível”. E talvez ouvir canções antigas que tragam uma nova esperança e uma nova aurora nos faça lembrar que isso é cíclico. E o universo é tão generoso que nos dá a chance de tentar melhorar.
Acho que poder cantar os textos que foram já falados, fala de esperança. Significa que talvez a gente possa repensar e fazer uma construção nova. Pra que essa nova aurora venha.
A gente tá bem longe ainda. Talvez seja uma possibilidade. Cantar essas coisas antigas não deixa de ser um elo. A gente poder trazer pra hoje e retomar esse aprendizado, quem sabe construir agora a partir dessa vivência terrível uma nova aurora. Sempre vai ser um caminho interessante para tentar evitar a repetição de padrão. A gente construir novos modos e comportamentos.
Você morou nos EUA. Como esse processo inspirou seu processo de composição e musicalidade?
Muito. Quando eu fui morar nos EUA, eu tinha 18 anos. Eu tenho uma tia que morava lá e tinha um antiquário. Ela pegava as coisas do lixo e tal, restaurava e aí vendia. E aí então eu fui, essa coisa meio jovem sem rumo, meio louca.
Eu estava perseguindo uma coisa musical. Pela escola do jazz, do soul, soul sempre foi uma coisa que eu sempre curti. Muito nova já gostava do soul assim. Queria descobrir um pouco dessa escola vocal, entender e tal. Eu fui pra Nova York, morei por um curto tempo. 1 ano e 2 meses.
Mas foi lá que eu comecei a compor, me descobri compositora lá. Foi me distanciando do Brasil que eu entendi o jeito que queria compor as coisas do Brasil. E teve muito esse questionamento de “fica aqui, as coisas estão acontecendo”. Eu estava conhecendo um monte de gente legal por lá, estava me virando, começando a cantar em barzinho…
Mas eu tinha muito em mente que queria muito vir pro Brasil fazer um disco de música brasileira aqui. Lá foi um estopim, aquele fósforo acendeu e eu levo esse ano como um ano muito decisivo pra quem eu me tornei. Não só na composição.
Foi lá que eu tive acesso às músicas de rua; do rap, das coisas latinas também. Eu morava num bairro que era majoritariamente latino americano negro e eu via rap o dia todo. Foi aí que eu conheci a Erykah Badu, a Lauren Hill, foi aí que eu via o cara do Beastie Boys andando de patinete… foi o ano que eu comecei a compor coisas do Brasil, porém dentro desse universo muito fervilhante. Foi muito decisivo pra mim. Penso que esse ano conta bastante da minha história. Não a toa eu resolvi cantar Beastie Boys. Achei que tinha a ver trazer uma banda que é originalmente punk e migra pro rap e faz uma bossa nova. É por aí.
De que forma a canção que leva o nome do álbum reflete o disco completo? Mistura de tudo, e isso lembra Salvador, que tem uma diversidade de ritmos e gêneros musicais.
Primeiro pela grandiosidade da canção, pelo impacto… pelo texto do Ronaldo Bastos nessa letra. Que quando eu falei que queria cantar Milton, tinha essa lista grande de Milton. O Marcus me ajudou muito no processo. E essa canção eu conhecia, mas ela bateu de um jeito diferente durante a pandemia hard. Nem vacina tinha ainda…
Tem uma coisa também de uma ordem de esperança. Também falar sobre sonhos que são deixados ali. E que ficam. Ela tem esse chamado pra construção de um novo sonho. Eu acho que era emblemática para ilustrar o disco. É um gosto de sol né. É o que a gente almeja, o que a gente deseja. No entanto não é gosto do sol. Porque não há gosto do sol. A gente ainda ainda tá longe disso. Mas há um gosto de sol.
E fala sobre essa ambivalência que não tinham o sol, por exemplo, com o confinamento… quantas pessoas eu vi que estavam sem nenhuma fresta de sol durante… e também quantas pessoas expostas… que estavam pro front, fazendo as coisas… é e essa expressão, que já traz muitas reflexões. Mas a própria canção, que já é grandiosa por si, só do Milton e do Ronaldo. Mas lembrar do que a gente quer. Do desejo real do álbum, que é a nova aurora, que é um lugar de reavaliação e de reconstrução, acho que era a música que mais decifrava o álbum mesmo. E fez todo sentido. Foi por isso que ela foi a eleita.
Você comentou como a leitura inspira na composição. Você poderia mencionar um livro específico que te tenha causado isso?
Gosto de falar dos que eu estou vendo. Tem o “Som do Rugido da Onça”, que é um que estou apaixonada, que fala sobre essa questão de decolonizar o Brasil. É muito interessante. Eu li tudo do Krenak. Eu sou muito apaixonada por Manoel de Barros. Neruda, principalmente os poemas de amor do Neruda, Clarice Lispector… Enfim, eu acho que sou o tipo de pessoa que me engrandeço na grandeza dos outros. Sempre é uma coisa coletiva. Sozinha acho que sou nada. É como se a chama que o outro propusesse me acendesse. Então eu vou ao cinema e me sinto inspirada, leio um livro e me sinto inspirada. Eu ouço até músicas de outras pessoas e me sinto inspirada. Acho que é a arte isso, né?